quinta-feira, 4 de abril de 2013



  
         MONTALEGRE E TERRAS DO BARROSO

por
Narciso Alves Pires (63 páginas)



                             Foto de António Tedim



















PREÂMBULO

Este livro foi escrito simultaneamente em termos de passado e em termos de presente, muito embora os acontecimentos, as coisas e mesmo grande parte das pessoas nele mencionados, pertençam efectivamente ao passado.
Tal facto deve-se em primeiro lugar a que assim o discurso se me tornou mais fácil, e como por outro lado alguma coisa daquilo que foi ainda é, compreender-se-á que não me tenha comprometido exclusivamente com o “era” ou o “estava”, para não amarrar a estrutura e a explanação dos temas a um limite temporal que, real embora, os tornaria decerto menos vividos.
Reconheço em todo o caso que escrever hoje sobre o Barroso de há cinquenta anos, é talvez escrever sobre coisas que não existem mais. Em verdade é quase como se viesse falar dum mundo que já não há.
Este livro será assim como uma carta escrita e endereçada há muito, mas que por imponderáveis diversos só hoje chega ao destino.
Acho aliás, que não o tendo escrito quando me eram vivas as impressões e próximos os acontecimentos, talvez também o não devesse fazer agora. Mas que querem? Eu sempre arrumei mal o fazer e o sentir, sempre deixei o coração em ontem e os olhos em amanhã! Resta-me esperar que a percepção dos leitores distinga atrás dos reposteiros do presente os contornos reais do passado.
Quanto ao resto, para as pessoas não conhecedoras das realidades sociais e culturais do Barroso, parecerão certos passos deste livro menos verosímeis. Para outros, estudiosos e observadores locais, dispondo de perspectivas mais amplas no espaço e no tempo, parecerão certas generalizações menos apropriadas. Finalmente ainda, algumas opiniões expendidas afigurar-se-ão a outros chocantes e mesmo contestáveis.
De uns e de outros respeito inteiramente as opiniões, permitindo-me apenas lembrar que a escala de valores a que estamos habituados não tem, - não tinha! – ali o mesmo significado, pelo que a factos iguais poderão corresponder juízos e interpretações diferentes.
Em todo o caso creio ter dado no essencial a realidade, pelo menos aquela que então se vivia no Alto Barroso, particularmente nas aldeias de entre Montalegre e Pitões.
Devia este livro ao Barroso e muito especialmente à região de Montalegre. Desde logo por razões genéticas: - Meu pai e minha mãe eram dali.
Depois pela marca indelével que na minha formação e talvez mesmo na minha vida foi deixada pela permanência que ali fiz, primeiro com a minha avó paterna, dos 2 aos 6 anos, e mais tarde, já com 21 anos, durante uma permanência de sete meses.
Devendo-o ao Barroso, devo-o igualmente aos seus habitantes, àqueles muitos que conheci e me acompanharam durante o tempo que ali passei, dum ou doutro modo contribuindo para que este livro fosse possível. É também a eles que o consagro.
Perdoar-me-ão no entanto se nesta dedicatória incluir igualmente duas pessoas sem as quais nada me seria possível, - minha mulher e minha filha.
Uma e outra porque à sua sensibilidade, ao seu amor e ao seu estímulo, devo o pouco que sou e o alguma cosa que fiz. Portanto também este livro.











VIAGEM

A estrada Braga-Chaves era naquele tempo um verdadeiro martírio de curvas, poeira e buracos. Nalguns pontos mesmo, a condução tinha que ser bastante cuidada, pois o bordo exterior da estrada aluía com facilidade sob o peso dos veículos e o espectáculo à altura daquelas ravinas e barrancos, conquanto de grande beleza, não era muito tranquilizador.
Percurso moroso e arrastado, embora de raras paragens, proporcionava apesar de todas as incomodidades, paisagens extraordinárias. Desde os píncaros agressivos do Gerês, até ao bucolismo dos ribeiros e fios de água, deslizando docemente centenas de metros abaixo, a paisagem ora nos surgia empolgante, ora se apresentava melancólica e quase chocante na sua pureza.
Trepidante, a camioneta ruminava os quilómetros, deixando ver de longe  em longe as ruínas de qualquer casebre, umas vezes por outras uma capelinha perdida num cerro, raramente uma povoação. Povoação onde a passagem da “carreira”, embora todos os dias repetida, parecia assumir um ar de acontecimento e novidade misteriosa. A verdade é que o espanto e a surpresa maiores eram dos passageiros, vindos de longes terras, perante as estranhas casas e lugares que se lhe iam deparando.
Os próprios tipos humanos, angulosos e primitivos, como que talhados em madeira escura e rija, sugeriam figuras da Idade Média. Depois também, os trajos, as alfaias, o descuido da apresentação, o tosco das casas, tudo contribuía para nos sentirmos noutra época e noutro mundo.
Indiferente a tudo isto, a camioneta arrancava e lá seguia perante o ar pasmado de uns e vagamente suspeitoso de outros, até que, quilómetros além, se nos deparava um quadro igual.
Claro que para a maior parte dos passageiros, os sítios, as pessoas e as coisas por que passávamos, eram vulgares, uniformes e chatamente vistos, enquanto para outros, - e também para mim, cujas recordações de infância o tempo tinha delido -, tudo era estranho e invulgar, mesmo surpreendente.
Assim, enquanto uns se iam afazendo àquelas realidades, tentando aprofundar-lhe as razões e esforçando-se por compreendê-las, outros, demonstrando uma indiferença pesada, mal deixavam deslizar sobre a paisagem, as pessoas e as coisas, um olho baço e desprendido, do mais absoluto desinteresse.
A estes últimos, obviamente pessoas daqueles termos ou que por ali passavam com frequência, nada os impressionava o primitivismo das gentes, o aspecto rudimentar das casas, ou as fugidias cenas entre-vistas.
Estranho deveria eu parecer-lhes, com o meu fato de citadino, a gravata garrida, os sapatos luzentes.
Entretanto cada volta da estrada era como nova cena de um filme, horizontes cada vez mais amplos, aqui e além uma capela numa lomba, uma ou duas vacas tasquinhando num monte, uma ou outra fonte de chafurdo marginando o caminho.
E de vez em quando, repentinamente, o salto brusco das águas sob as pontes que atravessávamos, o sol reflectindo-se, as pedras externas falando de um passado remoto.
Do Minho para Trás os Montes as terras iam pouco a pouco perdendo o seu revestimento frondoso e verde, mostrando-se cada vez mais nuas, até finalmente parecerem apenas um conjunto ciclópico de arestas, picos e rochas.
Foi num cenário destes que atingimos a barragem da Venda Nova, então em fase de acabamento, e onde, quase ao lume da água se descortinavam ainda as casas submersas da antiga povoação.
Como era impressionante e comovente, no silêncio apenas quebrado pelo ruído da camioneta, aperceber sob as águas claras as paredes ainda erguidas daquelas casas que durante séculos haviam sido o lar de alguém!
Entretanto iam-se-nos deparando algumas povoações mais, quase todas de pouca importância, exceptuando talvez Vila da Ponte, terra onde muitos anos antes eu tomara com minha avó a camioneta para Braga, de regresso da minha primeira viagem.
Também aí uma saudade pungente me assaltou, ao recordar essa primeira viagem, o largo então circundado de árvores, agora desaparecido, todos esses momentos da infância distante em que um pequeno eu assombrado tinha ainda uma avó, a sua avó que se fora!
Enfim, chegava-se ao Barracão após cerca de cinco horas de viagem, depois de respirar e engolir o pó levantados pelo rodado da camioneta no seu percurso de pouco mais de cem quilómetros.
No Barracão, decerto antiga estação da mala-posta, havia ainda que mudar para outra camioneta que faria a ligação a Montalegre, 12 quilómetros além, enquanto aquela seguia a caminho de Chaves, destino último da viagem.
Com ela seguia a maior parte dos que até ali me haviam sido companheiros de viagem, uns olhando com ar curioso, outros nem por isso.  No fundo éramos para eles aquilo que todos os outros deixados ao longo do percurso haviam sido para nós – minúsculos fragmentos que o rio da vida arrastava e dispersava para diferentes e talvez nunca mais encontrados destinos.










































TRÁS OS MONTES

Trás os Montes. Barroso. Montalegre. Cheguei a esta região pela primeira vez em 1931, com cerca de três anos de idade, para passar uns tempos com a minha avó paterna.
Prolongou-se esta estada por quatro anos, e por estranho que pareça, esses quatro anos, perdidos lá tão para longe na estrada do tempo, marcaram-se indelevelmente e alguma coisa ficou a ligar-me a eles para sempre.
Minha avó, mulher enérgica e de uma só palavra, áspera e franca como todos os daqueles termos, logo me entregou aos cuidados da professora da aldeia. Foi ali naquela escola humilde, que com três anos, aprendi as primeiras letras e abri pela primeira vez os olhos para o mistério que os livros apresentavam, fazendo ao mesmo tempo os meus primeiros amigos.
De mistura com a aprendizagem escolar deu-se a minha iniciação na “doutrina”, pois minha avó, profundamente religiosa como todos os habitantes do Barroso, desde logo passou a levar-me com ela à missa.
A breve trecho eu papagueava o “Credo”, a “Ave-Maria”, a “Salve-Rainha”, o “Padre Nosso”, o que me levou a ser particularmente distinguido pelo bom abade, o qual devido aos progressos que eu ia fazendo, chegou até a presentear-me com cinco tostões!
Esses ensinamentos perderam-se em mim, e é com um perfume de tristeza e nostalgia que hoje recordo a modesta igrejinha da aldeia, com o interior iluminado a velas e cheirando a incenso, o seu adro pequenino, onde sob uma laje repousam há muito os restos da minha avó.
Lembrar-me hoje desse adro é compreender inteiramente o significado das palavras humildade e paz, é recolher-me interiormente, é chorar sobre o meu tempo!
Três ou quatro episódios que ainda hoje recordo com alguma nitidez, não me ligam tanto a esse tempo como outra qualquer coisa de indefinido que comigo veio e que só um desconhecido fluxo ancestral poderá talvez explicar.
Só dezasseis anos mais tarde ali voltei, desta vez para uma estada de sete meses. Criando amizades que iriam perdurar, conhecendo agora os homens e as coisas, apreciando as sensações colhidas, o passado vinha juntar-se ao presente, estabelecia-se um vínculo, dava-se um sentido exacto ao sangue de antepassados que me corria nas veias.
Cheio desta certeza, dei-me a viver e a conhecer aquilo que o meu “eu” por ancestralidade conhecia já. Foi como se realizasse uma viagem ao mais antigo de mim, para além das idades, e regressasse com emoções finalmente cristalizadas no indivíduo que hoje sou.
É dessa experiência que vos falo.

















ALGUNS DADOS SOBRE O BARROSO

Crê-se que o Barroso tenha sido habitado desde tempos imemoriais, mas os mais antigos elementos de informação de que dispomos; - dólmenes e antas -, datam apenas de há quatro ou cinco milénios.
Tais monumentos, quase sempre situados no cimo dos montes, no silêncio e na ma majestade dos grandes espaços livres, foram muito claramente erguidos para fins religiosos ou funerários por povos então ali fixados e que assim quiseram honrar os seus mortos mais importantes. Este culto dos mortos demonstra tratar-se de povos que praticavam uma religião e adoravam um Deus.
Sendo sedentários, necessariamente se dedicavam à pastorícia e à agricultura como forma de sobrevivência, certamente tendo fabricado as suas próprias alfaias e as armas primitivas com que caçavam e se defendiam.
Estes instrumentos, utensílios e armas, devem originalmente ter sido talhados em pedra e só mais tarde em ferro e bronze, conforme os naturais iam tendo conhecimento e acesso à metalurgia. Tal facto pode de resto comprovar-se pelos inúmeros achados arqueológicos feitos na região, onde a par de instrumentos e objectos de pedra e cerâmica, mais rudimentares e primitivos, apareceram á luz machados de bronze, pontas de lança e fivelas da época pré-celta, e ainda colares de ouro e moedas de origem romana.
Isto para além de vários monumentos de origem e significação desconhecidas, aos quais o povo atribuiu, como normalmente acontece, uma designação própria e um cunho lendário.
Como quer que seja, pode afirmar-se com segurança que desde tempos imemoriais o Alto Barroso foi habitado por povos de diversas origens e percorrido por outros que mais ou menos demoradamente por ali passaram a caminho doutros destinos.
Assim, segundo os estudiosos, terão ali vivido sucessivamente oestrimínios, romanos, suevos, visigodos e mouros, e embora menos significativamente ou de passagem algumas franjas de outros povos como sefes, álanos, vândalos, etc.
Neste continuado passar de povos e gentes, e devido aos frequentes ataques movidos entre si, deve a determinada altura ter surgido entre os que por mais tempo se fixaram, a necessidade de construírem posições fortificadas para se defenderem. Estas fortificações, de que ainda hoje se encontram numerosos indícios, eram constituídas por várias muralhas e fossos, ao quais aproveitando os relevos e condições naturais se situavam normalmente em colinas abruptas, plataformas de paredes a pique, ou elevações balizadas por cursos de água.
Nasceram assim os chamados “castros”, fortificações primitivas em cujo interior a população se refugiava e se defendia dos ataques dos seus inimigos.
Esta população, vivendo em casas rudimentares, de forma geralmente circular, igualmente desenvolvia no interior dos “castros” grande parte das suas actividades.
Aparentemente, parte dos numerosos “castros” da região terá sido de construção mourisca, mas vários outros serão muito anteriores ao domínio árabe.
Ainda hoje é possível encontrar vestígios de muitos deles, alguns dos quais foram até desobstruídos e estudados sob a direcção de qualificados investigadores.








MONTALEGRE

Montalegre, sede de Concelho, situada a cerca de 100 Km de Vila real e 120 de Braga, é afirmada de origem romana por alguns historiadores, enquanto outros a supõem ainda mais antiga e erigida no local dum antigo castro.
De qualquer modo, e embora as referências a seu respeito datem apenas do Século XIII, deve ter antecedido bastante a nacionalidade.
Aliás alguns achados pré-românicos ocorridos nas proximidades atestam sem margem para dúvidas que esta zona terá sido intensamente povoada há bem mais de dois mil anos.
Em 1950 o Concelho abrangia 35 freguesias, com 132 aldeias e mais de 30.000 habitantes, enquanto a Vila dispunha de Farmácia, Cafés, Tabernas, casas de comércio e postos da G.N.R. e da Guarda-Fiscal.
Além disso existia ainda uma Pensão bastante rudimentar, mas nenhuma casa de espectáculos ou cinema.
O seu vetusto castelo compreendia uma torre de menagem e três cubelos menores, tudo ligado por uma muralha com mais de dois metros de espessura e já um tanto arruinada. A torre de menagem continuava no entanto a desafiar o tempo, alçada sobre as pedras do rio, como uma interrogação apontada aos montes da fronteira.
No seu conjunto, mudo mas impressivo, o castelo evoca as guerras e assédios sofridos ao longo dos séculos, desde o princípio, - desde antes -, da nacionalidade. Testemunha de acontecimentos esquecidos, vigia hoje inútil de horizontes de onde já não vêm inimigos, ele guarda para sempre os segredos e mistérios do assado distante.
No interior das muralhas, um poço meio atulhado, deixa ver uns degraus, que descendo em espiral ao longo das paredes se perdem na profundidade. Segundo uma lenda que hoje se conta e eu ouvi, era por um túnel que partia do fundo deste poço e ia desembocar a cerca de dois quilómetros, na margem do rio, que em cão de assédio se procedi ao abastecimento de água e víveres à população.
Seja ou não lenda, a verosimilhança pode aceitar-se pois é pouco provável que a função de tal poço fosse apenas a de prover ao abastecimento de água à população sitiada, dado situar-se numa elevação onde dificilmente poderia encontrar-se um veio do precioso líquido.
Quanto às torres, tive ocasião de visitar o interior daquela em que se encontra o relógio da Vila, e aí pude verificar que as grandes pedras rectangulares das paredes s encontravam cobertas de sinais cabalísticos, os quais nos dizem dum sacerdote que acompanhava a visita, seriam como que uma espécie de assinatura que os artistas gravavam nas pedras que trabalhavam.
Sabe-se que tal costume era de facto usual, mas conquanto aceitável e verosímil, não me pareceu que naquele caso pudesse valer para a totalidade dos sinais e marcas expostos, uns de significado pouco compreensível, outros fugindo em absoluto a qualquer tentativa de interpretação.
Quanto à Vila propriamente dita, era constituída por uma parte mais antiga, a Portela, à direita e em declive, e outra mais moderna no alto, onde se situavam as duas ou três ruas de comércio.
Também na parte alta, em frente ao largo do Toural, se situava o edifício administrativo, com as instalações da Camara Municipal, As Finanças, Tribunal, a Cooperativa Agrícola e o Correio.
Claro que antigo e moderno eram ali termos um tanto sem sentido, já que em boa verdade a Vila se encontrava na generalidade como que envelhecida. As casas, boa parte das quais ainda cobertas de colmo, apresentavam-se enegrecidas, as ruas tortas e de piso irregular, o interior das lojas escuro e encardido.
Nos umbrais da ampla portaria administrativa, os nomes dos mortos na guerra de 1914/918, gravados na pedra, atestavam a comparticipação dos filhos da terra na já distante hecatombe.
Em frente, o já referido largo do Toural, onde se realizava a feira do gado, tendo á esquina a velha cadeia e o posto da G.N.R..
Os cafés, ao tempo o Transmontano e o Terra Fria, situavam-se, o primeiro no caminho de saída para as aldeias do Noroeste, e o segundo sobre o centro da Vila. No Transmontano, mais tosco e mais antigo, o ambiente era sombrio, com pouca luz, só animando quando a sala se compunha com os jogadores de damas e os bebedores de cafezinhos. Tinha também uma espécie de gabinete reservado aos jogadores de cartas, aliás de reduzida frequência.
Quanto ao Terra Fria, mais arejado e moderno, apresentava já condições razoáveis para o meio e o tempo, dispondo até de um bilhar. Em todo o caso, para ambos o negócio era escasso, pois para além dos habitantes da Vila, que de café pouca vida faziam, só os raros forasteiros que por ali aportavam, ou os habitantes das aldeias que em dias de feira iam mercadejar, lhes davam alguma animação.
Havia também uma farmácia mais ou menos e uma barbearia cujo artista, modesto, quase sempre se encontrava no Terra fria jogando qualquer coisa já que os clientes, de barba semanal e cabelo antigo, lhe não davam muitas oportunidades.
Para além da Igreja, do castelo e do cemitério contíguo, havia ainda o pelourinho, junto do qual um tanque de água dessedentava os animais.
Em resumo, Montalegre, como aliás todas as aldeias do seu termo, era uma terra parada no tempo, onde as pessoas viviam e pensavam como se vivessem numa ilha a que as caravelas do progresso ainda não tivessem chegado. A própria Natureza, ao circundá-la de imponentes e sucessivas montanhas, como que estabelecera uma barreira entre os seus habitantes e o resto do mundo.
Na distancia, entre a terra e o céu, os montes sempiternos, estendiam-se até à fronteira. Dum lado o Larouco, denso, afirmativo, individual. Do outro o Gerês, repartido, sucessivo, quase invisível na distancia. Entre ambos uma quantidade de picos menores, como pintos rodeando a galinha mãe.
Embelezando e completando isto, ao longe, para sudeste, uma ponte sobre o Cavado parecia abalar para o passado a cada sol poente.

























AS POVOAÇÕES

As povoações da bacia do Cavado estendem-se pelas duas margens, embora mais numerosas e mais próximas do rio as da margem direita. Assim, a partir de Montalegre, temos nos primeiros quinze quilómetros, à esquerda, apenas a povoação de Cambezes e já mais desviados do rio, São Pedro e Contim.
À direita topamos sucessivamente com Donões, Mourilhe, Frades, Sezelhe, Travassos, Paredes e Covelães, e também já consideravelmente afastadas do rio, Pitões e Tourém, esta última numa reentrância da fronteira, mais parecendo um dedo enfiado pelo nariz de Espanha.
Pelos vales, nas encostas, nas dobras, as aldeias antigas, apesar de tudo poéticas no seu primitivismo, esbracejam e morrem pouco a pouco, traídas pela civilização e pelo progresso. Caídas do bolso do destino no correr das idades, por ali se quedam na espera dum fim que o êxodo dos novos e a morte dos velhos cada dia parece tornar mais próximo.
Cada vale cavado entre as montanhas é como que um gigantesco cadinho onde a vida já referveu, mas em que a pouco e pouco os restos da existência humana arrefecem e se vão transformando em cinzas.
Vidas que ali decorreram, paixões que se agitaram, histórias estranhas ou banais que se viveram, tudo vai ficando para trás, desvanecendo-se em fumos de ausência e tornando-se cada vez mais saudade e lenda!
E um dia, um dia próximo talvez, o último habitante fechará comovidamente a sua porta, acariciando ainda a esperança de voltar, mas tendo, mas sentindo bem no íntimo, uma sensação de mágoa que só pode ser a de partir para sempre.
E aí, a velha aldeia de ruas tortuosas e casas enegrecidas pelo fumo de vinte ou trinta gerações, ficará sozinha, para morrer no silencio e na majestade, talvez só transitoriamente despertada pelo uivo ou o rastejar de qualquer animal dos montes!
E o vento passará, igual ano após ano, as árvores e os simples arbustos crescerão e cumprirão o seu ciclo, os montes quedarão austeros e imponentes, enquanto a velha aldeia onde um dia moraram a ambição e o riso, o sofrimento e a vida, essa ir-se-á deixando esquecer e sepultar entre silvas e fragas, morrendo até em cada morte daqueles que ali foram1
Mas esse não era ainda o presente quando ali estive pela segunda vez, há já quase cinquenta anos. Nesse então era a vida, calma mas preenchida, com os seus problemas e as suas alegrias, as suas tradições e as suas já ousadias de progresso.
Era a vida dos campos, rude e áspera mas sã, em que as gentes se identificavam com os animais, as águas, as serras, as próprias pedras dos caminhos, como se em si contivessem uma afinidade mineral, uma ascendência vegetal, uma compreensão animal.
Por ali estendiam asas os sonhos e as auroras de quantos, começando a viver, mal se atreveriam a supor outros longes.
















GENTE DO BARROSO

A escassez demográfica do Barroso faz com que cada um dos seus naturais conheça apenas algumas centenas de pessoas para além daquelas que vivem na sua própria terra.
Isto enquanto os habitantes das grandes urbes como Lisboa ou Porto, conhecem e por qualquer modo estão ligados a milhares de pessoas, seja por conhecimento de emprego, de transportes, de café, de clube ou bairro, ou qualquer outra forma de convívio habitual.
Acontece que o homem do Barroso passa uma parte importante do seu tempo a sós com a Natureza ou com os seus animais, cultivando os campos, construindo sebes, reparando casas e caminhos, ou percorrendo os distantes montes em busca de pastos e lenha.
Resulta assim que o homem do Barroso faz muitíssimo menos conhecimentos pessoais, mas consagra a esses conhecimentos muito mais tempo e atenção que o citadino. Como aliás consagra a quase todas as coisas que tem ou faz.
Só que por isso mesmo, cada uma dessas coisas é sentida, feita e tratada mais humana e profundamente, enquanto as suas amizades são mais duradouras e mais reais.

































INFANCIA NA ALDEIA


O padre da terra da minha avó gostava muito de mim porque eu aprendia a “doutrina” com muita facilidade. Uma vez por outra dava-me um tostão, e uma vez até deu-me cinco tostões, o que para o tempo era um gesto largo. Lembro-me bem que eram cinco tostões, uma moeda branca que me deslumbrou. Para a minha devota avó, esta predilecção do prior pelo neto era motivo de orgulhosa satisfação. Com efeito já nesse tempo eu memorizava bastante bem, de modo que não sentia qualquer dificuldade em repetir de cor todas as orações e ladainhas.
Nas noites de Inverno, em que a minha avó saía para seroar numa qualquer das casas da aldeia, nem sempre eu a acompanhava. Ainda hoje não compreendo porquê, uma vez que a opção era minha e ficando em casa me transia de medo até adormecer finalmente.
Seria por vaidade, para parecer forte, porque o facto era que mais eram as vezes em que ficava sozinho do que as que a acompanhava.
Os serões decorriam normalmente em casa do Zé Mineiro, onde se contavam aquelas velhas histórias de bruxas, fadas e almas do outro mundo, histórias que naquele tempo, - tinha eu 3,4 anos -, se me afiguravam de todo reais. Aliás, como reais eram também encaradas pela generalidade dos adultos que as ouviam com a mesma atenção que eu lhes dava.
Uma vez em que voltava dos campos com a minha avó, ao entardecer, surpreendemos uma perdiz com seis ou sete perdigotos, saindo dum muro que circundava uma propriedade. Na confusão que se seguiu, a perdiz fugindo com os perdigotos e nós atrás deles, lá conseguimos deitar a mão a um que eu levei triunfalmente para casa. Prendemos-lhe uma pata com um cordel sob a grande pedra em que as pessoas costumavam sentar-se à porta da minha avó, mas com grande desgosto meu, passados dois ou três dias o perdigoto morreu.
Outro episódio que recordo é o de um indivíduo chamado Luciano, e que até nem era da terra, me ter prometido uma pistola de madeira igual a uma que me mostrou e muito me entusiasmou.
Algum tempo depois, durante uma missa dominical, eis que o avisto entre as pessoas que assistiam à cerimónia. Ele estava em baixo, na nave, e eu em cima, numa espécie de balcão ou galeria superior, onde tomavam lugar os que não cabiam na nave.
Assim que o avistei comecei gritando lá de cima que queria a pistola, e o chinfrim foi de tal ordem que o padre se viu obrigado a interromper a missa. Escusado será dizer que à saída da igreja minha avó se encarregou de me demonstrar o grau de blasfémia que eu havia cometido, zurzindo-me a preceito.
Tal como doutra vez em que passei toda a tarde no rio, aos ninhos com o Cacetas. Tendo chegado ao fim da tarde, minha avó que se dera a cuidados pela minha ausência, acolheu-me com uma cana na mão, aplicando-me um correctivo que me deixou o rabo a arder. E só não aconteceu o mesmo quando outra vez me ausentei para ir às castanhas porque tive a sorte de trazer algumas que provaram a minha versão.
No entanto, ríspida como era, minha avó escondia sob essa dureza aparente um bom coração e gostava bastante de mim, por isso se preocupando tanto quando eu desaparecia por mais tempo.
Mulher enérgica, séria e austera, ela era bem produto daquelas terras que lhe fechavam a vida, e se muita ternura escondia no peito, exteriormente era aquilo, - fria como a neve, áspera como as pedras, justa e direita como o curso dos dias.
Não me lembro de alguma vez vê-la rir. Tampouco de vê-la chorar. A sua imagem foi sempre a cópia da sua vida difícil, passada entre penedias agrestes, curtida pelos Invernos, experimentada pelo tempo e algumas dificuldades.










PASSATEMPOS NA ALDEIA

Por vezes ao Domingo de manhã, após a missa a que ninguém faltava, juntava-se um grupo de moços atirando à pedra, no caminho ao fundo da horta de Pereira, junto à taberna do meu tio Luciano.
O primeiro lugar era geralmente disputado entre o Bento do Coelho e o meu primo Zé do Vale, normalmente com vitória deste, mas devo dizer que com a pedra pequena, várias vezes eu ganhei.
Isto porque enquanto eles faziam valer a força, atirando com os dois pés fincados no chão, eu valia-me mais do jeito do balanço, rodopiando sobre um pé só, o que logicamente me proporcionava maior impulso para o arremesso. Com pedras maiores, - meu primo chegou a atirar com uma que eu mal sustentava com os dois braços -, já eu nada conseguia, pois não conseguia dar o tal jeito em face do seu peso.
Por causa deste divertimento, praticamente o único arremedo de desporto que ali se praticava, - já que a pesca e a caça tinham fins absolutamente utilitários -, davam-se por vezes tremendas zaragatas.
Era o caso de um perdedor sofrer mal a derrota, e palavra puxa palavra, gerava-se por vezes um arraial de pancadaria.


































SERRAS

É o Barroso uma região extremamente acidentada, onde os montes e as depressões de terreno se sucedem, píncaro após píncaro, desfiladeiro após desfiladeiro.
As suas serras principais, - Larouco, Gerês, Barroso, Alturas e Leiranco -, contam-se entre as de maior altitude do país, constituindo por assim dizer o terminal dos Pirinéus, os quais prolongados para Sudoeste, atravessam a Galiza e entram em Portugal, estendendo-se até ao Minho.
Pode mesmo afirmar-se que todo o Alto Barroso é uma serrania contínua, já que entre as serras do Larouco e do Gerês se estende ininterruptamente uma cadeia de montanhas intermédias, cuja altitude se situa entre os 1200/1400 metros.
Embora predominantemente pedregosas e ásperas, a Primavera veste-as de cor, tapetando-as de urze, carqueja, queiroga, tojo e giestas. Nas alturas, quase solitários, alguns carvalhos e vidoeiros elevam-se orgulhosamente sobra as rochas ciclópicas, vindas da aurora do mundo.
A água, abundante e fresquíssima, brota gaiatamente de inúmeras fontes e nascentes, constituindo um prazer saboreá-la estendido entre as urzes e fetos, vendo-a manar de um fundo de areia finíssima.
Vezes sem conta, flanando pelos montes, eu procurei essas fontes para me dessedentar, e já saciado, voltava de novo a debruçar-me para mais um trago, tão grande era a satisfação e frescura dada por aquelas águas.
































RIOS

Para além de vários cursos de água menores e que só engrossados pelas chuvas do Inverno assumem alguma expressão, os rios mais importantes do Barroso são o Cávado, o Bessa e o Rabagão.
Destes, o Bessa, rio pequeno mas famoso pelas suas trutas, corre entre Sarraquinhos e Santo Aleixo, onde desagua no Tâmega. O Rabagão, nascido por alturas do Codeçoso, vai confluir com o Cavado, de que é afluente, um pouco abaixo da famosa ponte de Misarela.
Quanto ao Cavado, segundo rio português, antes de seguir para Oeste a infiltrar-se no mar, junto a Vila do Conde, atravessa em toda a sua extensão o Alto Barroso, nomeadamente a região de Montalegre.
Nascido nas alturas do Larouco, desce primeiro pronunciadamente até esta Vila, cumprindo a partir daí e até Covelães um percurso quase plano. Ao longo dos quinze quilómetros que separam Montalegre desta povoação, apenas alguns pequenos saltos e açudes cortavam nesse tempo a superfície plana do rio, pelo que o desnível pouco excederia os quinze metros.
O rio, neste troço pouco largo e profundo, salvo nalguns locais em que um pego se escancarava negramente sob a limpidez das águas. A partir de Covelães no entanto, o desnível tornava-se acentuado, sendo as águas do rio, que antigamente apenas se utilizavam na agricultura, represadas e utilizadas em imponentes barragens, com vista à produção de energia.
Durante o Verão as águas passavam devagar sob a superfície aparentemente imóvel, reflectindo sem um estremecimento as árvores das margens e as nuvens do céu. Plantas de características próprias como as espadanas e os fetos, - a que ali usualmente chamam “fentos” -, cresciam nas margens ervosas, entre o mato viçoso, sombreado pelas copas frondosas dos robustos carvalhos, os ondulantes ramos dos salgueiros e as tremeluzentes folhas dos vidoeiros.
A meio da corrente, pelo rio abaixo, emergia, penedos e ilhotas atapetadas de areia, enquanto nos troços planos a água quieta da superfície brilhando ao sol, era a própria imagem da serenidade.
Ao longo do curso do rio, sucediam-se áreas extensas cobertas de espadanas, por entre as quais os peixes iam deslizando harmoniosamente em requebros e ademanes.
Atravessando o rio, algumas pontes, geralmente em locais onde a profundidade não permitia vadeá-las, como na Ponte Nova e na Ponte Monim. Em maior número e em locais menos profundos, grandes pedras, mais ou menos planas, a que os naturais chamavam “pondres” ou “pondras”, permitiam a passagem servindo como atalhos do rio.
Pedras pisadas a gastas por gerações que há muito desapareceram, elas figuravam, juntamente com as encruzilhadas dos caminhos, no lendário de todas as aldeias, pois era nelas ou à saída delas que, afirmavam, muitas vezes surgiam lobos, bruxas, lobisomens e almas do outro mundo…
Quanto a peixe, o rio era relativamente pobre, tanto no que respeita à qualidade, como à quantidade. Até Covelães apenas três espécies se encontravam, - a boga, o escalo e a truta, os dois primeiros mais abundantes, a última mais rara mas mais delicada.












FAUNA E FLORA

Região de imponentes serranias, natural é que ali se aceitem numerosos animais, como o lobo, a raposa, o gato bravo, a lebre, e principalmente o coelho. O javali e o cabrito montês ou gamo, em tempos ali existentes, terão desaparecido da região, enquanto o cavalo selvagem cuja extinção era praticamente um facto, parece estar a reaparecer, mercê das condições que lhe são proporcionadas no Parque Nacional do Gerês.
Quanto a aves, muitas eram igualmente as espécies existentes, desde a águia e o milhafre à perdiz, ao gaio, à pega, ao melro, ao pombo bravo e muitas outras de menor porte. Isto para além de corujas, mochos e mais aves nocturnas.
No que respeita à flora, constituindo o carvalho e o vidoeiro as principais reservas florestais da região, mesmo estas espécies eram já muito abundantes, dado o desbaste sofrido ao longo dos anos sem a necessária reflorestação. O clima, a exploração comercial das madeiras, os solos difíceis, com serranias e pedregais extensos, e por último a oposição dos naturais à reflorestação, cada vez mais diminuíam para a diminuição dessas espécies.
Com efeito, se por um lado a procura de madeira de carvalho e vidoeiro levava ao abate sistemático destas árvores, por outro lado o facto dos viveiros destinados ao repovoamento florestal ocuparem extensões consideráveis de montes e baldios até aí utilizados no pascigo dos gados, levava as populações das aldeias a proceder sucessivamente à sua destruição. Claro que a reflorestação das serras seria de inegável utilidade, contribuindo para o progresso e valorização económica de região, mas os seus naturais, sem alternativas para a escassez dos pastos, dificilmente atendiam a planos a mais ou menos prazo, dependentes como estavam de necessidades imediatas. Daí a oposição demonstrada e a destruição sucessiva e sistemática dos viveiros plantados.
Para além de carvalhos e vidoeiros era possível encontrar também razoável número de carvalheiras, alguns castanheiros, uns quantos pinheiros, pereiras e macieiras, e até um ou outro cedro ou plátano. Mas conquanto isto signifique que estas e possivelmente outras espécies poderiam ali adaptar-se, - o castanheiro chegou mesmo a ser abundante e constituir a cultura privilegiada da região -, o facto é que a expressão florestal do Barroso era então pouco significativa.





















O MOSTEIRO E A CASCATA DE PITÕES

Nos termos de Pitões dois pontos merecem especial referência: o Mosteiro de Santa Maria das Júnias e a Cascata.
O Mosteiro situa-se na serra de Mourela, escondido numa depressão de dois montes, entre silvedos e matos. É contornado a nascente por um riacho anónimo, no Inverno bastante caudaloso, o qual algumas centenas de metros abaixo se despenha de considerável altura, formando a conhecida Cascata de Pitões.
Segundo um documento existente no cartório bracarense, o Mosteiro existiria já no Século XIV, embora a referência seguinte nos apareça, apenas num outro documento do Século XVII existente no Convento de Santa Maria de Osera, na Galiza.
Ocasionalmente, pessoa amiga descendente de famílias de Pitões, confidenciou-me ter visto no Mosteiro, creio que gravada na parede junto ao altar mor, uma data que lhe pareceu ser 1095.
Embora ali tenha estado em 1950, não me foi então possível visitar o interior da Igreja, pelo que não posso assegurar pessoalmente a veracidade da informação. Em todo o caso creio poder aceitar-se que a fundação do Mosteiro haja sido anterior à nacionalidade, embora verdadeiramente nada de seguro pareça poder afirmar-se sobre a sua origem.
Segundo uma lenda recolhida da mesma fonte, um tanto diferente de outras versões mais conhecidas, o Mosteiro teria sido mandado erigir por quatro cavaleiros que havendo-se perdido por aqueles córregos, formularam a promessa de ali consagrarem à Virgem um Santuário, caso reencontrassem o caminho perdido, como efectivamente aconteceu.
Outra lenda, diferente e referida por outros autores, é a que respeita a um abade, Frei Gonçalo Coelho, que em tempos ali terá vivido. Segundo a versão que me foi dado ouvir, os habitantes de Pitões ouviram certa noite os sinos do distante Mosteiro tocando ininterruptamente, e quando de manhã ali se dirigiram depararam com o abade morto, num caixão sobre o altar-mor.
Ainda em relação a este abade uma outra lenda, referida por outros autores, é a de que ele teria previsto a sua própria morte e morrido efectivamente uma semana depois, perdido nas neves da serra, quando voltava de Espanha.
Tal facto ter-se-ia dado por volta de 1501 e entre as duas versões a coincidência maior, e quase única, é a do tanger dos sinos, também neste caso mencionada. Como quer que seja, este abade ficou na lenda e na devoção das gentes de Pitões com o nome de São Gonçalo.
Quanto à Igreja, embora não possa assegurá-lo, pareceu-me dividida a meio por dois tipos de arquitectura dissemelhante, dissemelhança aliás surpreendida em vários outros pormenores, o que poderá significar que nem todo o conjunto haja sido edificado na mesma época.
Com efeito, enquanto por exemplo a porta da Igreja, de arcos ogivais, de figuração bastante elaborada e nítida, parece acusar o tipo romântico, já o amplo forno, magnificamente conservado, parece sugerir outra concepção arquitectónica, possivelmente mourisca. Em todo o caso esta hipótese assenta numa recordação superficial e de modo algum pode considerar-se definitiva.
No mesmo claustro, exactamente à entrada, e semelhando sentinela de um castelo antigo, perfilava-se então um magnífico cedro, pelo que sei, já infelizmente desaparecido. Também em toda a roda do pátio algumas colunas restavam e sobre elas apenas já existiam três arcos. Como tudo o mais deste austero e impressivo conjunto, também o claustro pagara ao tempo o seu tributo, pairando nele uma atmosfera de silencio e recolhimento vindos de muito longe.
À esquerda as ruínas das celas dos frades mostravam a céu aberto o interior atulhado de destroços, enquanto nos restos de paredes se viam ainda os sítios onde tinham estado cravados os espigões de ferro das janelas.
Espreitando por sobre essas paredes derruídas, avistava-se lá em baixo um emaranhado de arbustos e silvas escondendo por completo o rio, que no entanto se ouvia marulhar nas profundidades.
Aqui os monges, longe do mundo e dos homens, se haviam dado à meditação e, - quem sabe? -, talvez também ao sonho. Cultivando a horta, surpreendendo um ou outro animal do monte, um ou outro peixe em linha de água, moendo o grão e cozendo o seu pão, aqui rezavam, aqui atingiam decerto a serenidade e a paz, na contemplação bucólica da natureza.
Que verdades atingiram? Que respostas tiveram?
Fossem quais fossem, hoje deles nada resta senão as lajes que pisaram, e quando estas tenham por sua vez desaparecido na voragem do tempo, - então restará apenas  céu!
Ao lado do mosteiro situava-se o cemitério, então também já praticamente arrasado e com algumas campas a confundirem-se e a perderem-se entre a vegetação, em resultado duma inundação provocada pelo rio durante um Inverno especialmente rigoroso. Segundo os naturais terá sido uma tromba de água que alagando os muros quebrou a lousa de várias sepulturas, arrastando os caixões para as profundidades.
Das poucas intactas mal se distinguiam já os dizeres, caindo pouco a pouco no esquecimento aqueles para quem foram a última cobertura na Terra. E um tanto poeticamente, sobre as sepulturas nasceram rosas!
Ainda no cemitério, e acima do velho portão ferrugento, podiam observar-se duas velhas esculturas de pedra, uma de cada lado, representando animais pouco identificáveis. De qualquer modo ao ver de longe estas esculturas a que o povo de Pitães chama cães e alguns entendidos supõem ser ursos, ocorreu-me de imediato uma relativa semelhança com a célebre “Porca de Murça”, espécie de totem de pedra existente na Vila do mesmo nome, próximo de Chaves.
Em todo o caso foi apenas uma impressão e como não as examinei em pormenor, nem sequer de perto, - era então muito novo e estava apenas vivendo -, não posso ter uma opinião firme sobre o que essas esculturas poderiam efectivamente representar.  De resto ao longo do tempo, os ventos, chuvas, o granizo e o calor decerto lhes esbateram as linhas alterando-lhes o aspecto inicial.
Sei hoje que a Noroeste do cemitério existia, e talvez ainda exista, um velhíssimo moinho, onde possivelmente os monges moíam o seu grão, mas a já referida informalidade da minha passagem e o facto de ninguém na altura se lhe haver referido, fizeram com que não o apercebesse.
Quanto à Cascata, distante do Mosteiro algumas centenas de metros oferecia uma panorâmica magnífica, com a água despenhando-se num primeiro salto sobre uma protuberância rochosa, sensivelmente a meio da altíssima parede vertical, semelhando um púlpito suspenso sobre o abismo.
Esta protuberância, batida e escavada pelas águas ao longo dos séculos, acabara sendo perfurada, e pelo fundo aberto, rugindo e espumando sob a pressão, as águas precipitavam-se sobre o fundo do vale.
Daqui seguiam em declive, serpenteando entre ervedos e verticais de pedra, até desaparecerem muito ao longe, numa das muitas voltas do percurso.
Curiosamente, outra saliência de um pouco mais de um palmo de largura subia obliquamente da base da altíssima parede até lá muito acima, à referida protuberância, dentro da qual como numa gigantesca taça, a água fervilhava antes de se precipitar ruidosamente no vale, dezenas de metros abaixo.
Vale no qual me dei a explorar as numerosas cavernas cavadas pelo tempo e pelas águas, conjecturando sobre que idade teriam os velhíssimos carvalhos que bordejavam o leito da corrente e cujo aspecto decrépito falava de séculos.




















TIPO DE SOCIEDADE

O tipo de sociedade existente no Barroso assenta fundamentalmente em princípios comunitários difíceis de encontrar em qualquer outra região do país.
Com efeito, numa região onde se diz haver nove meses de Inverno e três de inferno e onde as privações e dificuldades sempre fizeram parte do evangelho da vida, o homem, impreparado e rude, mas generoso e forte, cedo deve ter compreendido que a sua permanência e mesmo a sua subsistência iriam depender muito do esforço conjugado de todos.
Nasceu assim um tipo peculiar de sociedade em que todos ajudam todos, tornando possível fazer face às carências existentes e às condições adversas em que a vida decorre.
Foi apoiados neste princípio que os habitantes do Barroso puderam criar e desenvolver condições de vida, construindo habitações, aclimatando animais, adaptando métodos de trabalho e escolhendo as culturas necessárias à sua subsistência.
Claro que pouco a pouco os clarões de civilização foram subindo da banda de lá dos montes, gentes de outras terras foram surgindo e a própria experiência dos que dali saíram e voltaram, introduziu ideias e curiosidades novas.
Mas ainda não há muitos anos se deparava no Barroso com um estado de evolução e um tipo de vida que quase podiam dizer-se unicamente apontados para a sobrevivência. O rio dava o peixe, o monte dava a caça, a corte dava o leite e a carne, a messe dava o pão, e tudo isto o dava Deus!
Este pouco parecia no entanto ser bastante para aquele povo excepcionalmente hospitaleiro, que quebrado o gelo inicial se mostra alegre, franco, trabalhador, sociável e capaz de dar a camisa do corpo ou repartir o caldo e a broa. Ainda hoje, só pelo habitual desdenhar dos de fora se torna um tanto desconfiado e embora de boa índole, torna-se em tais casos assomadiço e por vezes mesmo violento. Fora disso é o que ali está: franco, jovial, quase ofendido se alguém lhe não aceita a casa e a mesa.
Nesta sociedade, com muito raras excepções, a identidade dos habitantes é normalmente dada pelo nome próprio acompanhado do patronímico familiar ou em alternativa, pela referência à profissão, ao ponto da aldeia onde vivem ou mesmo à terra de onde a família seja originária. Esta designação e não apenas o nome é que verdadeiramente os identifica, todo o mundo sabendo quem é por exemplo o Bento da Pereira, o João do Outeiro, o Manuel Sapateiro, o Amadeu do Chortelo, a Teresa do Russo ou a Maria do Padroso.
Também no tratamento familiar se notavam algumas particularidades, sendo o pai e a mãe respectivamente tratados por “senhor Pai” e “senhora Mãe”.
Quanto aos filhos, o mais velho se for rapaz é o “morgado”, se for rapariga é “morgada”, enquanto os tios são tratados por padrinhos.
Entre os costumes familiares era de uso os filhos pedirem a “bênção” aos pais e aos padrinhos, beijando-lhes a mão, e em quase todas as casas o chefe de família rezava em acção de graças antes da ceia, acompanhado por todos os presentes.
As medidas de capacidade eram ainda referidas pelas antigas designações de “almude”, “canada” e “quartilho”, enquanto para os sólidos os termos arcaicos estavam a cair em desuso, embora se ouvissem ainda mencionar o “alqueire” e a “rasa”.
Quanto às medidas lineares, o metro era já praticamente absoluto embora também aqui se ouvisse ainda referir por vezes o “côvado”, a “vara” e mesmo o “palmo”.













HABITAÇÃO

O habitante do Barroso, espiritualmente ligado às serras, às árvores, aos rios e às próprias pedras dos caminhos, parecia fazer parte de um Universo em que o humano estava de tal forma integrado que se tornara ele próprio mais um elemento do todo.
Esta identificação Telúrica do homem com a Natureza reflectia-se também no primitivismo das habitações toscas e enegrecidas, as quais embora rectangulares sugeriam bastante o que poderiam ter sido as primitivas habitações no interior dos “castros”.
Com efeito a generalidade das habitações era rudimentar, com paredes de pedras amontoadas, quase sempre encimadas por um tecto de colmo, e sem disporem de chaminés ou aberturas, pelo que o fumo e o ar apenas nelas circulavam através da porta, em certos casos por um janelo pequeno, situado ao fundo.
No interior, negro de fumo e absolutamente despido de qualquer nota de conforto ou higiene, distinguiam-se a lareira, a enxerga de palha, os bancos corridos, o armário, o escano, e nalgumas ainda, a rima de lenha para o Inverno. Por baixo, sob as mal ajustadas pranchas do chão, roncavam, mugiam e orneavam indistintamente, porcos, vacas e burros, enquanto em cima, cães, gatos e galinhas, transitavam à vontade, em busca de migalhas e restos.
Ali toda a bicharada goza dum estatuto especial, bem podendo dizer-se até, em relação aos animais de trabalho que eles integram de cero modo a organização familiar, merecendo por isso os cuidados correspondentes à importância que assumem na economia da casa.
De facto uma vaca, um vitelo, um burro ou um cavalo doentes, constituem grande preocupação para toda a família, concedendo-se-lhes cuidados e atenções particularmente desvelados.
Para além de todos estes também o porco se poderia considerar um verdadeiro privilegiado, e não fora conhecer-se-lhes o fim próximo e certo, bem justificaria a inveja de todos os animais.
Com efeito o porco era no Barroso o único ser vivo que para além de nada produzir senão esterco, dispunha de alimentação farta, engrolando sucessivos caldeiros de batatas, farelo e couves, mimo este último que os próprios donos raramente se dispensavam.
A importância dos animais na economia familiar fazia mesmo com que se lhes outorgasse uma espécie de identidade, sendo habitual qualquer habitante duma aldeia reconhecer e saber a quem pertenciam os animais, até de outras aldeias, que por vezes encontravam perdidos nos montes ou em lugares distantes do seu pouco habitual.
Tudo isto mostra a razão porque os animais compartilhavam tão à vontade a habitação dos próprios donos, nela se movimentando à vontade, em especial nas frias noites de Inverno.
Quanto à casa, a lareira era por assim dizer o lugar sagrado onde os ancestrais da família há muito desaparecidos, como que vinham ainda sentar-se entre os presentes, nos longos serões de Inverno.
Como já se disse o tecto era geralmente de colmo, palha de centeio disposta em feixes acamados uns sobre os outros por mão mais experiente, para que as águas da chuva e da neve, escorrendo por entre eles, deslizassem facilmente até aos beirais. Este sistema impedia qualquer infiltração das águas, apenas havendo que proceder de anos em anos à substituição do colmo na zonas apodrecidas pela humidade.
Claro que tratando-se de casas sem ventilação e onde, pelo menos no Inverno, a lareira nunca se apagava, o fumo era ali rei e senhor, e a escuridão interior apenas era amenizada pela própria lareira e pela vaga e mortiça luz de uma candeia.
Mesmo em pleno Verão, quando a lareira apenas se acendia para confeccionar as refeições e ao cair da noite, as espessas nuvens de fumo amarelo escuro, voluteando lentamente em espirais, pouco deixavam ver.
De facto este fumo, não achando saída, ia-se acumulando e dando ao ambiente um aspecto fantasmagórico, ao mesmo tempo que forçava os presentes a curvar-se para resguardar os olhos.
Ao longo dos anos as paredes foram-se assim cobrindo dum negro brilhante, e pouco a pouco o ambiente foi-se impregnando de tal modo que todas as coisas, - utensílios, roupas, as próprias pessoas -, tudo foi tomando o cheiro e a cor do fumo. Numa região onde o Inverno é extremamente rigoroso, com quedas extremas de temperatura, este tipo de casas onde a lareira nunca se apaga e o calor se concentra, torna-se por assim dizer um refúgio e uma necessidade.
Quanto a casas de telha, naquele tempo haveria talvez quatro ou cinco, além da escola e da capela. Tudo o mais era coberto de colmo, embora mesmo assim algumas apresentassem uma construção mais apurada, com janelas rasgadas e as grandes pedras rectangulares perfeitamente talhadas e simétricas.
Das casas de telha de Frades, a mais importante era a do Gervaz da Costa; enquanto que a melhor das de colmo era a do Bento da Pereira, - afinal uma e outra bem significativas -, a primeira mostrando a prosperidade actual e a outra evocando a prosperidade passada.
Em ambas havia até uma banheira, luxo raro para uma região onde se não dá grande importância à higiene e onde até as raparigas mais dadas a cuidados e perfumes se expunham a críticas, dada a extravagancia que isso ali representava.
Porque na verdade e no que respeitava a cuidados de higiene, a filosofia reinante era a de que “só se lava quem está sujo”…































ALIMENTAÇÃO

No Barroso praticavam-se as três refeições habituais, embora sob designações diferentes, já que o pequeno almoço, o almoço e o jantar, eram ali designados respectivamente por almoço, jantar e ceia. À tarde tinha lugar a merenda, podendo ainda tasquinhar-se a meio da manhã um naco de centeio e uma patanisca de bacalhau.
De qualquer modo a alimentação, frugal e uniforme, era pobre de qualidade e pouco variada. Assim, a primeira refeição do dia, a que, como referi, lá chamavam almoço, ainda para alguns se reduzia á “água quente”, ou seja, uma malga de água fervida com umas olhas de azeite, acompanhada por um razoável naco de pão de centeio.
Outro preferiam leite, geralmente de cabra, de gosto pronunciadamente azedo, em que migavam pedaços de pão. Entretanto o café ia já aparecendo e ganhando adeptos, tornando-se aos poucos e poucos o pequeno almoço preferido. Apesar disso naquele tempo quem mais o consumia ainda eram os raros visitantes e os filhos vindos da cidade para férias, os quais devido ao hábito longe adquirido, o tomavam com uma fatia de pão barrada com manteiga.
Manteiga, ela também de fabrico local, espessa, amarelada, de pouca qualidade e com tendência para rançar.
Quanto às refeições, geralmente cozinhadas em potes de ferro de três pernas, suspensos numa corrente fixada nas traves do tecto sobre a lareira, a sua riqueza não era maior, já que normalmente se compunha apenas de batatas, por vezes acompanhadas dum ovo cozido ou estrelado.
Um hábito generalizado era o de irem mergulhando as batatas em leite coalhado, empapando-as assim numa espécie de iogurte natural, de aspecto não muito agradável, mas provavelmente de sabor aceitável.
Após a matança do porco e também em ocasiões festivas, lá apareciam a chouriça e uns bons nacos de presunto, já que na aldeia toda a gente fazia a sua “ceva” e tinha o seu “fumeiro”.
A “ceva” é, como se deduz, a engorda do porco para a matança, após a qual os enchidos, presuntos e demais partes do animal eram curados por exposição ao fumo, constituindo-se assim o chamado “fumeiro”.
Os enchidos eram preparados com azeite e um forte colorau espanhol de cor castanho-avermelhada, donde resultava escorrer quando cortados ou cozinhados mais tarde, um líquido espesso e ácido de aspecto desagradável. Aliás toda a carne, - cabeça, chispes, presuntos -, adquiria inevitavelmente esse aspecto, já que durante a cura se ia impregnando de fumo e de pó, cobrindo-se por isso duma camada de um negro sujo, quase consistente.
O que aliás não dava aos naturais grandes cuidados, sendo normal que assim mesmo a consumissem e achassem deliciosa.
Para além destes mimos a mesa tinha por vezes um coelho do monte ou uma fritada de peixe do rio, segundo a sorte fora mais ou menos propícia.
Mais raro, normalmente em dias de festa, matava-se um cabrito ou, sinal de civilização, comprava-se no talho da Vila uma porção de vitela. Noutras ocasiões, como na Páscoa, mas especialmente no Natal, o cardápio melhorava substancialmente, pois para além dos já citados petiscos, apareciam também as rabanadas, as filhós, a aletria e o arroz doce. Era a hora da pequenada, cujo olho guloso deslizava quase assombrado por toda aquela munificência, tão acima do habitual que lhe parecia um sonho.
Aliás toda esta festa, toda esta azáfama, emprestava ao Natal um encanto mais a juntar ao transporte religioso que então se vivia e a que tanto as crianças como os adultos eram especialmente sensíveis.
E depois à noite, à roda da lareira onde os potes ferviam as suas misturas maravilhosas e as grandes sertãs frigiam as saborosas filhós, um sentimento de pura fraternidade se estendia sobre todos e perante aquele fogo vindo do alvorecer da humanidade, os corações transbordavam e as almas diziam em silencio uma oração que eu não sei dizer!










VESTUÁRIO
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As gentes do Barroso trajavam austera e pobremente e o seu vestuário, pouco ou nada cuidado, apresentava-se normalmente remendado ou puído pelo uso.
Com efeito nas aldeias, as roupas como quase tudo, eram aproveitadas até ao limite absoluto da sua duração e só de muito em muito tempo se adquiria uma ou outra peça de vestuário. Como excepção, algumas casas mais abastadas contratavam por vezes costureiras das aldeias galegas de fronteira, para confeccionarem as roupas da família.
No geral as mulheres vestiam saia grosseira e blusa de qualquer tipo barato, o qual para as casadas era obsessivamente escuro. Descalças muitas vezes, outras de tamancos abertos, usavam os fartos cabelos mal tratados e nenhum cuidado dispensavam à pele.
No entanto para a missa e para as festas apuravam-se mais, aparecendo de blusa bordada, saia e avental de melhor pano, meia branca e sapatos ou mesmo chinelas envernizadas.
Os homens, naturalmente mais sóbrios, de boné e calça grossa, camisa áspera de quatro botões e peitilho redondo, e quase sempre de socos. Para a missa, as festas ou idas à Vila, apresentavam-se mais alinhados, de boné novo, camisa lavada, calças de bombazina espanhola e botas cardadas.
Para o monte, eles e elas à vontade no Verão, de crossa ou capucha no Inverno. A crossa é uma curiosa capa de junco, constituída por várias peças sobrepostas e suficientemente ampla para cobrir todo o corpo e permitir liberdade de movimentos. Terminada em cone, a chuva desliza sobre ela sem minimamente penetrar no interior.
Quanto às capuchas, no Barroso mais utilitárias que vistosas, são capas de burel ou Saragoça, prensadas em enormes pisões de pedra. Estes engenhos, cujo funcionamento se assemelhava ao dos moinhos, eram bastante curiosos e de tal forma pisavam e maceravam os tecidos que os tornavam compactos e capazes de resistir ao frio e à chuva.

























SAÚDE

As aldeias da região não dispunham ao tempo de qualquer tipo de assistência médica, já que os poucos clínicos existentes no Concelho estavam radicados em Montalegre e só em casos extremos se recorria aos seus serviços.
Embora a distância a que a maioria das aldeias se situava da Vila, fosse uma das razões porque tão pouco eram procurados, a mais importante razão era na maioria das vezes de natureza económica.
Com efeito o facto de os habitantes do Barroso cultivarem e colherem praticamente todo o pouco de que necessitavam, tornava quase dispensável o uso do dinheiro, pelo que qualquer despesa assumia ali aspectos de raridade.
Por isso naquele tempo o gasto das centenas de escudos necessários para pagar ao médico e os medicamentos subsequentes, era evitado até ao limite, em última instancia até pelo próprio doente.
Assim em vez do médico e dos remédios, recorria-se as mais das vezes a rezas, esconjuros e mezinhas que, estas sim, constituíam ali a verdadeira farmacopeia, para cada doença havendo um receituário e um ritual consagrados pela tradição.
Claro que se o doente se curava, mais acreditada ficava a tradição e menos necessário parecia que se chamasse alguma vez o médico. Se o doente morria, pois fora feita a vontade do Senhor…
Em todo o caso quando por vezes determinadas doenças ou acidentes mais graves exigiam outros cuidados e mesmo internamento hospitalar, isso só podia ser conseguido em Chaves, para ali se enviando então os doentes.
Dou-vos a imaginar o transporte dum doente nessas condições, em pleno Inverno, a dorso de mula, pelas geladas veredas das serras até à camioneta, em Montalegre. Depois ainda, o trajecto até ao Barrcão, e por último mais umas dezenas de quilómetros inconfortáveis e dolorosos, até atingir finalmente o hospital em Chaves!


























CRIANÇAS

As crianças viviam e eram criadas um tanto descuidadamente, desde cedo participando nos trabalhos de casa e do campo, com o que aliás se sentiam bastante orgulhosas.
A escola era um acidente de percurso que os pais lhe evitavam muitas vezes, pois de acordo com a filosofia reinante, para trabalhar no campo não eram precisas “letras”, e essa coisa das leituras só servia para lhes meter ideias esquisitas na cabeça.
Aliás muitos pais também mal sabiam ler., já que muito novos haviam sido igualmente desviados para as serras e os trabalhos agrícolas. Até cerca de 1935 ainda havia nas aldeias um ou outro habitante mais velho que à sua roda reunia a miudagem aos serões, e de Cartilha Maternal em punho lá lhes ia metendo na cabeça os símbolos do alfabeto.
Melhor ou pior, a pouco e pouco todos ficavam mais ou menos capazes de fabricar uma carta e soletrar um livro. Isso no entanto acabou quando a Cartilha Maternal foi substituída e os velhos morreram sem que ninguém lhes seguisse o exemplo. Claro que havia algumas escolas, mas muito poucas, e quando mais tarde outras se construíram, o fio partira-se e praticamente uma geração havia passado a vau.
Pouco a pouco no entanto algumas professoras e regentes escolares começaram a surgir no Barroso, mas pelo menos no início a sua tarefa apresentava-se claramente excessiva. Vindas por vezes de terras distantes, cheias de entusiasmo, a breve trecho se viam desmotivadas, ao verificarem que os alunos faltavam sucessivamente.
Para cúmulo, os próprios edifícios escolares estavam muito mal apetrechados e não ofereciam um mínimo de condições nem qualquer defesa contra o frio rigorosíssimo do Inverno.
Indiscutivelmente, um trabalho heróico mas frustrante!





























VELHOS


Para com os velhos havia por assim dizer um respeito diferenciado, espécie de veneração patriarcal, quer eles fossem mais ou menos idosos.
Quando ainda válidos e activos, as suas opiniões eram atentamente escutadas, deles se aceitando a orientação dada aos assuntos de família e aos trabalhos agrícolas. Tratava-se aliás de pessoas que pela grande experiência adquirida no contacto directo e permanente com as realidades do dia a dia, eram normalmente de bom juízo e bom conselho, mantendo igualmente toda a lucidez e capacidade de trabalho.
Os já muito velhos e incapazes de darem o seu contributo de trabalho, mereciam do mesmo modo o respeito de todos, embora esse respeito envolvesse já um pouco de distância e de melancolia, como se se estivesse perante uma fotografia antiga. Eram de resto muito raros, pois no Barroso só se pára de trabalhar ao morrer.
Tratava-se assim de pessoas mais ou menos inválidas, peças prestes a sair do tabuleiro, pouco mais do que imagens, esperando numa estação deserta o comboio que os havia de levar além. Estavam ainda no seio da família, conversavam, comiam e dormiam, - tudo em pouco, aliás ., mas eles próprios sabiam e aceitavam ter perdido finalmente a direcção.
Sim, eles sabiam e aceitavam que a opinião e os conselhos escutados já não fossem os seus, e quase poderia assegurar-se que cumprindo embora as leis da vida, estavam preparados para a qualquer momento a deixarem.




























EMIGRAÇÃO

A emigração, conquanto de há longos anos praticada, não era muito significativa, até pelo fim do mundo que naquele tempo qualquer país estrangeiro representava para as gentes da região.
As saídas mais frequentes ocorriam então para as cidades de Lisboa e Porto, enquanto a emigração propriamente dita se orientava apenas para os Estados Unidos e o Brasil, um que por outro indo por excepção para as províncias ultramarinas.
O “salto” para França ainda não começara, a Europa ainda nem sequer fora descoberta. Pouco a pouco no entanto a emigração para a Europa, e muito especialmente para França, ia-se tornando vulgar e em alguns casos a população das aldeias começava a ser constituída na sua maior parte por velhos.
Certo que mais cedo ou mais tarde parte dos emigrantes acaba por regressar, mas o apego à terra-mãe não será já muito forte, pelo que mantendo embora os vínculos espirituais que o ligam ao seu primitivo mundo, muitos delas acabam procurando no próprio espaço nacional alternativas que os satisfaçam.
De facto pouco a pouco, devido ao contacto com outros povos, outras civilizações, e sobretudo diferentes condições de vida, os emigrantes, quase sempre os mais novos, foram-se apercebendo que o mundo não acabava, antes praticamente começava, para além dos caminhos da aldeia, da Vila ou do Concelho, em que havia nascido. E ao regressarem, a recordação das comodidades, das tentações e das luzes longínquas, começa a ocupar-lhes o espírito e a gerar desencantos que algumas vezes apenas terminam com o abandono do torrão natal e a procura da cidade que lá-baixo espera, prometendo mil oportunidades.
Que tais oportunidades não surjam, que as esperanças se frustrem, que a vida não lhes seja fácil, isso eles não o confessarão, isso não os fará regressar. Mesmo que esmagados e perdidos na imensidão da grande cidade que os ignora, eles persistirão, eles esperarão sempre.
E depois, enquanto esperam e sofrem, não fazem eles parte da multidão, não assistem eles ao mesmo espectáculo, não são eles próprios actores, ainda que mínimos, mesmo que falhados?
Viver na cidade é uma conquista que tem um preço e eles estão dispostos a pagar esse preço, mesmo sacrificando-se, mesmo renunciando ao seu orgulho.
Voltar como vencidos, isso não! E é assim que muitos emigrantes que no regresso não conseguem reintegrar-se e conformar-se aos limites estreitos donde provêm, escolhem esse destino.
E por isso também as aldeias do Barroso, como muitas aldeias de outras regiões do país, se assemelham pouco a pouco a um adelo de vidas, onde só os velhos permanecem, e teimosos das suas razões, continuam a recusar que outros mundos valham mais que o seu.
Isto, mesmo em face daqueles que um dia partiram e regressam acenando-lhes com espantos. Para eles só há uma verdade; - a sua vida foi preenchida e feliz, ali nasceram, viveram e morreram os seus maiores, ali nasceram, vivem e hão-de morrer eles!
Tudo simples, querer e não querer, gostar e não gostar, viver e morrer. E um dia, então, nada mais restará, desaparecidos os velhos, perdida nos novos a razão de regressar e até talvez a de recordar, a história daqueles mundos será esquecida…









PRODUÇÃO AGRÍCOLA

A produção agrícola do Barroso centrava-se quase exclusivamente no centeio e na batata, afinal os elementos básicos de alimentação dos seus habitantes.
A região dispunha de condições muito boas para a pecuária, mas pouco ou nada havia sido feito para aproveitar essas condições. Assim, sendo o centeio um produto de comercialização reduzida, a batata era praticamente a única fonte de receita para o lavrador, constituindo igualmente o alimento principal da vaca e do porco que o consumiam em grandes quantidades.
Culturas mais ou menos subsidiárias eram o linho, o milho, os legumes, e já muito pouco a castanha, em tempos a base da economia da região. Para além disto, ainda em duas ou três povoações se cultivava um pouco a vinha e algumas outras frutas. Quanto à cultura do tabaco, ela processou-se também até meados do Século XIX, tendo mais tarde sido proibida.
Para além das povoações já referidas, a região não produzia vinho, sendo o que ali se consumia trazido da zona de Ribeira de Pena, muito para sudoeste. Também árvores de fruta eram raras, como já se disse, apenas se encontrando alguns castanheiros e mais raramente ainda uma macieira ou uma pereira.
De facto no caso da fruta, como no geral da alimentação, a pobreza e a carência eram igualmente manifestas, cópia afinal do que em quase todos ao capítulos se verificava.
Região praticamente votada ao abandono e ao esquecimento, as aldeias não dispunham de luz eléctrica ou água canalizada, as estradas e caminhos eram insuficientes e primários e em todo o Concelho não existia qualquer indústria ou uma simples fábrica.
Destas carências e especialmente das verificadas com a alimentação, tiravam partido certos indivíduos de regiões distantes e mais favorecidas, os quais ali se deslocavam para trocar alguns produtos da sua terra, inexistentes na região.
Assim ao apresentarem-se com camionetas carregadas de uvas, nem sempre muito boas, e trocarem-nas cesto por cesto por batata de semente por eles mesmos escolhida realizavam um negócio altamente compensador.
De facto, receber por 30 quilos de sofríveis uvas, 70 ou 80 quilos de excelente batata de semente, ainda por cima mais cara quatro ou cinco vezes por quilo, não poderia deixar de considerar-se um magnífico negócio.
Aliás este filão era igualmente explorado por alguns outros que do Porto chegavam com camionetas de sardinha e ali procediam à sua troca pelas mesmas batatas, com igual ou maior vantagem.
Se não nos soubéssemos na Europa e em pleno Século XX, julgaríamos por vezes estar assistindo ao comércio praticado pelos antigos exploradores da selva e das terras primitivas, os quais a troco de espelhos, trapos e missangas, conseguiam dos naturais a sua borracha, as suas peles, às vezes o seu ouro.














LINGUAGEM

A linguagem em uso no Barroso acusava por vezes a proximidade da fronteira, incluindo exclamações e vocábulos de origem nitidamente galega. Também por vezes saltava uma ou outra palavra de inspiração brasileira, esta explicável pelo fluxo e refluxo migratório que em anos idos se verificara desta região para o Brasil.
De envolta com isto surgiam por vezes termos verdadeiramente eruditos, vernáculos de surpreendente tessitura, há muito em desuso, e uma que outra palavra estranha e desconhecida. De facto palavras como “richelo”, “bagueiro”, “lapantim”, “ludra” e “camola”, não são claramente do nosso dicionário.
Outras como “almalha”, “ferranha”, “leirão”, “banaboia”, “toural”, “trocho”, etc., embora do nosso léxico não se podem considerar propriamente muito usuais.
Cobrindo tudo isto o português deles, de termos amis ou menos adaptados à sua vivência, e em que palavras fortes, bastas vezes o palavrão, apareciam a cada passo, como se fossem vírgulas.
Era-lhes natural e espontâneo, tratando-se apenas dum afirmar de linguagem, aparecendo tais termos nitidamente alheados de significado, como se fossem meras interjeições destinadas apenas a reforçar a oração. Tanto assim era que se um estranho pronunciasse ali uma só daquelas palavras que eles distribuíam às dúzias, todo o mundo se calava e o olhava com estranheza, como se ouvissem tal termo pela primeira vez.
É que talvez nem se dessem conta do sentido inócuo com que empregavam essas palavras, e só depois de as ouvirem a estranhos reconhecessem tudo quanto elas poderiam significar.
Como quer que fosse, a conversa surgia ali entremeada de termos fortes a que um tom de voz de pouco trato dava apesar de tudo profundidade e peso.



























ALGUNS COSTUMES CURIOSOS

Há cinquenta anos a lavagem de roupa em frades era feita num tanque abaixo da horta da Pereira e não poucas vezes verifiquei que algumas mulheres usavam em vez de sabão uma pedra branca para esfregar as peças de roupa.
Por vezes também algumas optavam pela barrela, método antigo hoje em desuso, mas que descontado o desgaste produzido nas roupas as deixava duma brancura imaculada. A secagem ou “cora” era feita sobre a erva fresca das hortas que ladeavam o caminho ou sobre os muros que a marginavam.
Nesse tempo o uso de detergentes estava ainda na infância, sendo ali absolutamente desconhecido. De resto a gente do Barroso, habituada a bastar-se sem quase ter que recorrer ao dinheiro, só o fazia em casos de força maior pelo que a aquisição de qualquer produto novo para a lavagem estava obviamente fora de causa.
Também um dos curiosos e antigos costumes do Barroso era o de quando um rapaz estranho a uma terra ali arranjava noiva, ficar obrigado por uma espécie de tradição honrosa, a oferecer vinho aos homens e rapazes dessa terra, convidando-os para o efeito.
Se a coisa corria de boa feição e era o próprio que espontaneamente convidava, o normal era todo o mundo comer e beber e no fim não lhe deixarem pagar nada, numa manifestação clara e bem transmontana de como o seu gesto fora apreciado e de como a partir daí sempre ali seria bem recebido.
Se pelo contrário ele recalcitrava e pretendia eximir-se ao que era considerado obrigação de honra, era “atirado ao poço”, ou seja, lançado ao tanque onde as mulheres da aldeia lavavam a roupa.
A partir daí ele ficava mal visto e praticamente impedido de voltar e apesar desta tradição ser conhecida e observada desde há muito, o facto é que algumas vezes não era bem aceite, chegando a registar-se por isso escaramuças graves.
De resto nem mesmo aqueles que longe dali houvessem casado com raparigas da terra eram dispensados da praxe, e quando um dia ali aportavam, logo o marido devidamente informado se prontificava a cumprir a tradição.
Tive aliás ocasião de assistir a um caso destes, passado com um casal já quarentão, cuja ela havia casado em Lisboa com um indivíduo do Sul e que ao visitar pela primeira vez a aldeia não deixou de cumprir a praxe.
Outro aspecto arcaico era a distribuição do correio, feita regularmente por uma mulher que para o efeito percorria no seu burro todas as aldeias do rio a partir de Montalegre. Igualmente era esta mulher que no seu vaivém diário entre as aldeias e a Vila se encarregava de qualquer recado ou compra que lhe encomendassem, já que salvo nos dias de feira os afazeres do campo não deixavam aos habitantes tempo para tais deslocações.
Assim a sua chegada era sempre alvo de curiosidade e expectativa, especialmente por parte daqueles que esperavam correspondência ou encomendas.
Ela chegava normalmente de manhã, sendo a sua chegada anunciada pelo toque de uma campainha ou uma corneta. Para além das já referidas encomendas entregava então o encardido saco de lona esverdeada que continha o correio e cuja chave estava confiada à dona da taberna, encarregada da distribuição.
Um outro acontecimento que exorbitava da rotina era a inspecção militar, para a qual os mancebos eram convocados logo que atingiam a idade prescrita. Juntavam-se então em Montalegre jovens vindos de todas as aldeias do Concelho, os quais antes e depois da inspecção se reuniam pelas tabernas e cafés, petiscando e bebendo bastante.
Essa era de resto a forma encontrada para exprimirem a sua hombridade e a sua auto-suficiência. Que diabo! Vieram à inspecção, já são homens a sério e podem prová-lo bebendo tanto ou mais que qualquer outro!
Pelo dia fora iam beberricando e se a coisa calhava iam igualmente atirar um “chito” ou atirar à “barra”, consistia em fazer lançamentos com três pedras de tamanhos diferentes, previamente escolhidas para o efeito.
Tais pedras eram designadas pelos nomes genéricos de “pequena”, “mediana” e “grande”, e aquele que as lançasse mais longe era naturalmente o vencedor, sendo no entanto muito raro que o mesmo atirador ganhasse com as três. Era no entanto considerado campeão aquele que vencesse com a pedra grande.
Nesse dia se faziam novos conhecimentos e se começavam algumas amizades que iriam perdurar pela vida fora, já que tudo o que se relacionasse com a vida militar passaria a figurar entre as mais belas e duradouras recordações dos jovens daquele tempo.
Esse era pois um dia inesquecível, e quando ao entardecer o jovem voltava à sua aldeia, radiante e com flores e fitas no chapéu, o coração cantava-lhe. É que ser apurado para o serviço militar era como passar dum para o outro lado dum rio, - aquilo impunha-o aos mais novos, acreditava-o perante os mais velhos, e dava-lhe aura e encanto junto das raparigas.
Daí o seu interesse em ser apurado para o serviço militar, sua afirmação como homem, seu bilhete de identidade de adulto.
E o prestígio da farda se acaso vinham à terra de licença! Sentiam-se importantes, quase deuses, habituados como estavam eles próprios a respeitar todas as autoridades, das quais as representadas por fardas eram as mais importantes.
As histórias que eles contavam do quartel, as proezas de que se diziam intérpretes, a forma como se haviam imposto aos espertalhões da cidade!
Ná! Eles eram finos, estavas ali p’rás curvas, a eles não faziam o ninho atrás da orelha!




























CASAMENTOS

Normalmente os casamentos ali ainda eram designados pelo antigo termo de “bodas”, ocorriam após prolongado namoro, durante o qual curiosamente, tanto o rapaz como a rapariga costumavam negar que se namorassem.
A opinião dos pais era naquele tempo fundamental para que o casamento se realizasse, e muitas vezes, prevalecendo sobre a vontade e a escolha dos filhos, impedia a sua realização. Na base de tal oposição quase sempre se encontravam razões relacionadas com os bens de que os noivos dispunham, entrando mesmo em linha de conta o que a cada um deles caberia após as partilhas.
Claro que isto nem sempre sucedia, mas muitas vezes se dava que uma família, às vezes mesmo as duas, contrariassem um namoro por razões destas, levando os jovens a afastar-se mesmo que gostando um do outro.
Pela mesma razão de conveniência eram muitas vezes combinados e celebrados casamentos sem que entre os noivos existisse afecto especial ou sequer compreensão. Esta atitude dos pais, tantas vezes verificada, pouca oposição merecia dos filhos, habituados como estavam ao respeito patriarcal exercido pelo chefe da família. E acontecia até que quando a opinião dos pais era desobedecida, na maior parte dos casos o casal acabava por se dar mal.
Havendo no entanto acordo entre as famílias e decorrido o tempo de namoro necessário, dava-se então início aos preparativos para a cerimónia. Esta, luzida e complicada, obedecia toda ela a uma espécie de ritual profano, em que cada um desempenhava um papel bem marcado.
Neste ritual eram figuras de destaque os cantadores, que como lá se dizia “encomendavam” a noiva, mas que na verdade funcionavam como verdadeiros mestres de cerimónias.
Com efeito os cantadores não só “encomendavam” a noiva, como acompanhavam e dirigiam cantando toda a cerimónia, desde a saída dos noivos para a igreja até ao seu regresso, já marido e mulher, num cerimonial extenso e extremamente complicado, mas sem falhas.
Quanto aos convidados e familiares, as mulheres ataviavam-se com as melhores roupas e com todo o ouro que pudessem, enquanto os homens se apresentavam igualmente de ponto em branco.
No fim da cerimónia a pequenada, - praticamente todos os da aldeia mais os convidados -, era contemplada com amêndoas atiradas às mãos cheias. Quanto aos adultos, faziam as honras ao banquete que se seguia, comendo e bebendo pelo dia fora.
Entretanto formava-se o baile e todo o mundo rodopiava, acompanhando alegremente as diferentes “modas” que os tocadores iam executando. Dançando e cantando, fazendo honras à pipa e à mesa, assim decorria a festa e se consagrava a união de dois seres que a partir desse dia iam começar um destino comum.















TERES E HAVERES

No Barroso a riqueza duma casa ou duma família, inferia-se de vários indicadores, fossem eles o número e extensão de propriedades, o número de “pousadas” de centeio, o número de sacos de batatas, o número de cabeças de gado, e até mesmo o número de porcos que se matavam em cada ano.
Embora nem sempre estes factores concorressem por igual na mesma casa, o mais comum era que assim acontecesse, já que existia uma interdependência lógica entre eles.
Com efeito ter maiores colheitas implicava ter mais e melhores terras, e ter mais terras exigia por sua vez que se tivessem animais bastantes para as trabalhar. Tratava-se pois de uma espécie de cadeia em que cada factor condicionava  e era por sua vez condicionado por todos os outros.
Quanto à ceva dos porcos, uma matança grande caracterizava igualmente uma casa rica, pelo que representava uma abundância de carnes, presuntos e enchidos, - isto para além dos untos, adubos e pingos, gorduras que na região substituíam praticamente o azeite.
Resta dizer que sendo o dinheiro resultante da venda das batatas ou de qualquer outra proveniência, praticamente todo reinvestido na compra de gado e propriedades, fácil se tornava avaliar a capacidade económica de cada casa pela respectiva produção agrícola.


































COMUNITARISMO-COUTOS

O tipo de sociedade existente no Barroso, assentava como já foi dito, em princípios comunitários ajustados às características da região e às necessidades da população.
Tratava-se de uma organização sócio-económica essencialmente baseada na ajuda mútua, a qual tornando possível a realização das tarefas quotidianas aglutinava ao mesmo tempo os seus membros em torno de objectivos comuns.
Assim para qualquer acto importante da vida da aldeia, envolvendo interesses de ordem geral, era convocada uma reunião em que os representantes de cada família expunham os seus pontos de vista e davam a sua opinião.
Essa reunião ou “Couto”, tinha lugar junto à torre sineira da capela, sendo a presença dos habitantes convocada pelo tocar do sino. Então o regedor ou outro homem de opinião conceituada, expunha o problema, - compra ou venda do boi, construção dum caminho, reparação do moinho, colma de forno ou divisão de terrenos públicos, e cada um emitia o seu parecer até chegarem a um consenso.
Conseguido este, desde logo ficava determinada a forma como cada um participaria, - uns com trabalho, outros com dinheiro, outros com terrenos, segundo o assunto em causa. Quanto a pendências na aldeia ou mesmo entre gentes de aldeias diferentes, quando as havia eram entregues a um dos poucos advogados da Vila, o qual delas se encarregava e as fazia seguir para juízo, à falta de conciliação.
Era aliás necessário ser bom advogado e conhecer exaustivamente o meio local para navegar entre as razões peculiares de cada caso e a sua caracterização.
Em todo o caso era raro recorrerem aos serviços dum advogado, pois a velha experiência lhes havia ensinado que, como lá diziam, “mais vale ruim composição do que a melhor questão”…

























MOINHOS DO POVO

Os moinhos povo eram um exemplo marcante do associativismo do Barroso, em cujas aldeias, a par do culto feroz pela propriedade, grande parte dos trabalhos, bens e serviços eram igualmente compartilhados por toda a comunidade.
Assim acontecia normalmente com a moagem do centeio, que embora se fosse fazendo ao longo de todo o ano conforme as necessidades de cada casa, sempre ocorria mais em força no fim das malhadas, quando apurado o grão, o povo das aldeias acorria aos moinhos.
A moagem neste moinhos do povo era evidentemente gratuita, já que as despesas de conservação e reparação eram igualmente partilhadas por todos os que os utilizavam.
Moinhos particulares também os havia, embora raros e normalmente havidos por herança. Em Frades havia dois, o do Amadeu e o da Pereira, este último coberto, segundo soube, pelas águas da albufeira do Alto Cavado.
Moinhos velhos, em cuja a água ronronava moendo pacientemente o grão, sepultos hoje nas águas pela força do progresso, que segredos terão levado consigo?
Sentinelas vigilantes do rio, eles eram naquele tempo marcos vivos dum tipo de sociedade e duma forma de vida que a tradição teimava em manter. Em todo o caso, e rompendo com tudo isto, já nesse tempo o proprietário do moinho da Pereira, homem de razoável cultura, grande inventiva e imaginação fértil, instalara ali uma espécie de central eléctrica e mesmo um telefone rudimentar com o qual, não obstante, conseguia falar para sua casa na aldeia, a 4 quilómetros de distância.
Mercê de tal instalação conseguia ainda produzir energia suficiente para sua casa, única por isso a dispor de luz eléctrica na aldeia. Isto através dum complicadíssimo sistema de correias, tambores, dínamos e sei lá que mais, tudo, incluindo o próprio telefonem comprado algures num ferro-velho de Lisboa.
Dezoito postes de madeira colocados através dos campos, levavam até à aldeia a energia produzida, a qual só falhava um tanto quando o rio ia abaixo e a levada de alimentação do moinho ficava em seco.
Quanto ao moinho do Amadeu, acaçapado numa depressão à direita da Ponte Monim e alimentado igualmente por uma levada de água a partir do rio, embora semelhante, era de construção mais tosca e mais antiga. Era muito procurado, dada a presença habitual do seu proprietário, em contraste com o anterior onde quase nunca estava ninguém, já que praticamente só moía para a família.
Coberto de colmo, as paredes de pedra solta enfarinhadas, as teias de aranha pendentes e igualmente brancas de farinha, constituía um paraíso para os grandes leirões que por ali abundavam e com o grão se refastelavam.
Nas traves do tecto cruzavam-se canas de pesca, cestos, roupas velhas e diversas outras bugigangas. Em baixo, na roda do moinho, a água compunha músicas antigas, enquanto a pesada mó ronronava a sua própria canção e a farinha, mais branca ou mais morena segundo se tratasse de centeio ou de milho, ia caindo fofa e quente em toda a roda.
O ambiente era alegre, conquanto escuro, o cheiro da farinha agradável e o som do moinho entorpecente. E enquanto ao lado o rio ia murmurando melopeias estranhas, sentíamo-nos como na aurora do mundo, insensivelmente melhores, alheios e distantes dos problemas e das dificuldades da vida real.










O FORNO DO POVO

Legenda viva do comunitarismo ancestral das gentes do Barroso, o forno do povo, funcionando normalmente de noite, constituía talvez o exemplo mais marcante desse comunitarismo.
A sua utilização processava-se em sistema de rotatividade, uma casa após outra o utilizando até toda a aldeia ter cozido o seu pão, altura em que tudo recomeçava pela primeira casa, depois a segunda, e assim sucessivamente. Daí que entre uma cozedura e a seguinte decorressem normalmente quinze ou vinte dias, e não mais porque a amplitude do forno permitia que ali cozessem duas ou três famílias em cada noite.
O recinto compreendia o forno propriamente dito e o amplo espaço de entrada, à direita de cuja porta se encontrava o “tendal” uma plataforma de pedra correndo à volta da parede até ao forno. Este tendal era previamente coberto com palha e lençóis, afim de receber o pão já tendido e amassado nas masseiras domésticas.
A limpeza do forno era feita por aqueles que o iam sucessivamente utilizando, cabendo naturalmente o aquecimento inicial ao primeiro utilizador de cada noite.
Antecedendo a cozedura, polvilhava-se a massa e a pá com farinha, só depois as introduzindo no forno. Entretanto para verificar se o pão estava ou não já cozido, ia-se-lhe espetando um trocho seco, o qual se retirado com vestígios de massa, indicava que a cozedura ainda não estava completa.
Durante a noite, enquanto alguns cochilavam um pouco, outros estendidos pelo tendal iam contando histórias, e entre uma ou duas conversas retiravam o pão já cozido e substituíam-no pela massa crua.
No ambiente aquecido e aconchegador iam-se provando as “bolas” e “bicas”, pães mais pequenos e delicados de farinha de milho que as raparigas e mulheres da aldeia enfeitavam com desenhos feitos com um dedal ou um graveto seco.
Estas “bicas” e “bolas” são uma espécie de guloseima, já que o milho é ali pouco cultivado, apenas se encontrando pelas aldeias três ou quatro “canastros” ou “espigueiros”, mesmo assim já praticamente sem utilização. Quanto ao normal pão de centeio, apresentava-se de formato grande, para aí de 4 ou 5 quilos, e depois de cozido adquiria uma côdea áspera e grossa, sendo no entanto bastante saboroso.
Estes fornos do povo, com a fantasmagoria das chamas subindo da lenha que estala e rechina, eram também ponto de paragem e agasalho para os pobres, título que sendo de muitos só por alguns é assumido.
De facto pobres reconhecidos eram apenas aqueles que não possuindo quaisquer bens, viviam em nomadismo contínuo de terra para terra, aqui se lhe dando umas batatas, além uns feijões ou um pouco de centeio, e que aos fornos do povo se acolhiam para passar a noite, e igualmente na mira do naco de pão que sempre recebiam.
Quem eram, donde vinham e para onde iam, ninguém praticamente o sabia. Passavam apenas, de meses em meses, às vezes até de anos em anos,  alguns uma vez para nunca mais. Figuras trágicas e ignoradas, quase misteriosas no seu não-ser, pousavam uma bela noite no forno do povo, onde lhe davam guarida e pão, e de madrugada ei-los que levantavam arraiais e seguiam na sua peregrinação errante e sem destino, levando com eles a esmola do pão, o conforto do sono e os mesmos sonhos que traziam à chegada.
Na memória dos que com eles haviam passado essa noite, nada mais que um farrapo de recordação, que breve se esfumaria.
Quase como estes pobres, mas não tão pobres e tão isolados, outra espécie de nómadas passava de longe em longe pelas aldeias, apenas eventualmente se recolhendo ao forno do povo e logo seguindo adiante, para só reaparecerem alguns meses ou até anos depois. Eram designados “da volta”, e o seu mister era fazer biscates, amolar tesouras, facas e gadanhas e proceder a qualquer reparação ou conserto.
Paralelamente e à boa maneira dos ciganos, - com os quais aliás muito se pareciam -, negociavam, trocando ou vendendo alguns trastes, utensílios e mesmo animais que consigo traziam. Passavam, demoravam-se umas horas, e desapareciam de novo para só reaparecerem muito tempo depois.
Não era raro nesse meio tempo encontrá-los numa festa de aldeia, numa romaria ou numa feira, sempre tentando comprar, vender ou trocar fosse o que fosso, vocação final da sua existência nómada e desconhecida.
Pernoitavam pouco nos fornos do povo, adivinhava-se-lhes uma terra e talvez um lar, algures, mas de concreto nada se sabia.
Tinham certamente um nome, mas a identidade que se lhe conhecia era apenas aquela, “os da volta”.






































O BOI DO POVO

O “boi do povo” é um corpulento animal reprodutor que pasta regaladamente o dia inteiro, sob os cuidados dum pastor pago por toda a aldeia, em campos designados por “lamas do boi”. Não raro assomadiço e da mau génio, instintivamente ciente da sua função privilegiada, ele passa pela aldeia a caminho do pasto soltando mugidos e urros, investindo contra o restante gado, escorneando as portas das cortes e fazendo acautelar as pessoas.
Por vezes nem o seu próprio pastor escapa a uma investida, tendo que defender-se com o pau ou a sachola, o que nem sempre lhe evita uma escoriação.
De quando em quando são estes animais confrontados com outros de iguais características de outra aldeia, numa luta a que ali chamam a “chega”. Para isso são previamente postos em descanso da sua função reprodutora e engordados quase à pressão a fim de se apresentarem à luta no máximo da sua força.
Este descanso e esta engorda forçada, à base de farelo, batata e milho, estende-se por mais ou menos um mês e transforma os já corpulentos animais em verdadeiros mastodontes que chegam a pesar mais de mil quilos. Claro que os da aldeia oposta fazem exactamente o mesmo com o seu próprio boi, e assim no dia e no local aprazados, geralmente a meio caminho entre as duas povoações, apresentam-se os dois corpulentos animais, cada um seguido pelos habitantes das respectivas terras, dando vivas e fazendo enorme chinfrineira.
A presença da guarda impõe algum respeito e torna-se necessária, já que tratando-se de um caso de orgulho, os que perdem se sentem humilhados e não raro desagravar-se provocando e desafiando os contrários.
Isto deu por vezes origem a brigas monumentais, com feridos e até mortos à mistura, pelo que a partir de certa altura nenhuma “chega” passou a ser autorizada sem a presença das autoridades.
O embate desenrola-se em terrenos irregulares, com altos e baixos, rectas e declives, muitas vezes sucedendo que um boi que está dominando nitidamente o adversário, pressionando-o e levando-o à sua frente às arrecuas, perde por um momento o equilíbrio ao esboroar-se um torrão, ao pisar uma cova, ou simplesmente em resultado do seu próprio ímpeto.
Se em tal circunstância é ocasionalmente tocado pelos chifres do outro, pode suceder que abandone a luta e fuja, invertendo-se assim as posições e vindo a vencer aquele que já parecia derrotado.





















A “CHEGA”

Tendo assistido a algumas “chegas”, vi isto suceder em duas delas pelo que, com todo o respeito por outras opiniões, me pareceu que a razão porque um boi perde ou ganha pode ficar a dever-se apenas ao acaso.
De qualquer modo no fim da “chega”, os homens do boi vencedor – ou boi que “pôde”, como lá se diz -, enfeitam-lhe os chifres com bandeiras, cada uma correspondente a uma vitória, pelo que é fácil ver-se pelo número de bandeiras, quando se trata de um boi campeão.
Quanto aos da aldeia do boi que perdeu, esses retiram aborrecidos e despeitados, sentindo-se vexados pela derrota do seu boi, não sendo raro que este seja vendido ou mesmo abatido se acaso sofreu algum ferimento.
Sobre estas “chegas”, uma história que ouvi e que obviamente não pude confirmar, foi a de que, quando dois animais já lutaram entre si, se voltam alguma vez a encontrar-se, mesmo passados muitos anos, aquele que perdeu imediatamente foge, reconhecendo o adversário que já uma vez o venceu.
Uma outra história, esta ainda mais estranha, foi a de um caso ocorrido, salvo erro entre os bois de Pitões e Covelães, - ou Pitões e Tourém -, há muitos anos já, a avaliar pela época em que me foi contada e pela idade do narrador.
Fora o caso de o pastor de um deles ter promovido de sua própria conta uma “chega” entre o seu boi e o outro, que na altura se encontrava sozinho. Nessa “chega” o referido pastor conseguira que o seu boi vencesse o outro, para isso o atacando por trás à sacholada durante a luta.
Obrigado a defrontar ao mesmo tempo dois adversários, um mais forte que o atacava de frente, outro mais ágil que pelos flancos lhe desferia violentos golpes, o pobre animal teve que fugir.
Só que nessa mesma noite e sem que se soubesse como o conseguira, o vencido saiu da sua corte e atravessando os quilómetros de serra que o separavam da aldeia do seu adversário, arrombou-lhe a porta da corte e matou-o.
Passados tantos anos, dificilmente haverá hoje em qualquer das povoações alguém que recorde e possa confirmar esta história, que me foi contada por um natural de Contim, já falecido, e que se vivo fora contaria hoje mais de cem anos.




















A VEZEIRA

Por aquelas serras, os caminhos irregulares e volteantes, marcados pelo passar das gentes ao longo dos séculos, faziam a ligação entre as aldeias distantes, nalguns casos com os povoações espanholas da raia.
Confundindo-se com estes caminhos e veredas surgiam, por vezes bastante desviados, os sulcos mais largos e profundos da passagem da “vezeira”. Aí as patas cascudas e o retouçar continuado de ovelhas e cabras haviam descarnado o solo, traçando como que um rio de pedra, esbranquiçado e largo.
Era o caminho que dia após dia, ano após ano, os grandes rebanhos subiam e desciam em procura dos pastos. De facto a pastorícia, desde tempos imemoriais praticada no Barroso, assumia ali características especiais, dado o relevo montanhoso e sobretudo as alterações climatéricas verificadas ao longo do ano.
Assim, enquanto de Maio a Outubro o clima era ameno, com fresquidões e calores alternados, o céu limpo, a brisa leve e as águas frescas saltando de todo o lado, nos restantes meses tornava-se agrestes, enregelante e chuvoso, por vezes com a neve caindo dias seguidos.
Na Primavera e no Verão os caminhos da serra eram fáceis, o clima doce e os pastos abundantes, mas ao entrar-se pelo Outono e o Inverno tudo se transformava, os caminhos tornavam-se intransitáveis, o clima aspérrimo, o pasto desaparecia sob os grandes nevões.
Era então a altura em que o gado, - cavalos, vacas e burros -, ficava na corte, passando o Inverno a tasquinhar molemente o feno colhido no Verão, só raramente subindo aos montes e aproveitando uma nesga de sol.
No entanto a rês – cabras e ovelhas -, continuava subindo às serras todos os dias, apenas se alterando o sistema de pastoreio praticado nos meses anteriores. Assim, nos meses de Maio a Outubro o pastoreio era feito à vez por elementos de todas as casas da aldeia, cabendo a cada família participar pelo número de dias correspondente ao número de animais que possuía.
Era a “vezeira”, sistema que creio estar lentamente a desaparecer devido à diminuição acentuada dos rebanhos, provocada pela falta de pastos.
Chegado no entanto o Outono, contratavam-se alguns pastores, geralmente um homem e duas raparigas da aldeia, os quais a troco dum pagamento verdadeiramente irrisório afrontavam durante quase sete meses as agruras dum Outono e dum Inverno rigorosíssimos, conduzindo todos os dias os rebanhos às serras.
Perante este e outros exemplos chego a convencer-me que o povo do Barroso possui a rara faculdade de achar encanto em todos os trabalhos que dum ou doutro modo o ligam à terra e às coisas do seu ambiente natural.
Mas ainda em relação à “vezeira”, interessante era o modo como a rês era reunida e tocada para o monte, e como no regresso se distribuía procurando por si mesma a respectiva corte.
Assim todas as manhãs os pastores tocavam o sino, e a este toque cada casa da aldeia abria as portas das cortes para a saída da rês. Então no meio dos choutos e berros toda a ovelhada e cabraria, convergindo dos recantos e veredas da aldeia se dirigia alegremente para os caminhos da serra, sucessivamente marcados pelos rebanhos que de há centenas de anos os percorriam.
Iniciava-se então a escalada, já em grupo, um pastor à frente e os outros dois colocados estrategicamente ao lado e atrás., limitando-se a acompanhar a longa subida e a não deixar dispersar o grande rebanho.
Tarefa fácil aliás, dada a ajuda dos cães que os acompanhavam e que compenetradamente se encarregavam de meter na ordem os recalcitrantes. Quando apesar disso algum animal se atrasava demasiado, dois ou três gritos e uma lapa atirada com mão certeira, logo o fazia voltar.
Pelo dia fora, retouça aqui, tasquinha ali, o passo lento e sincronizado entre pastores e animais, lá iam subindo e descendo monte após monte até ao limiar de Espanha.
Ao entardecer, depois de os pastores terem feito algo para merendar próximo de qualquer fonte, regressavam à aldeia, onde chegavam já ao crepúsculo. Então cada grupo do rebanho separava-se paulatinamente e indo postar-se ordenadamente à porta da respectiva corte, desatava em alta berraria até que os donos os viessem recolher. Na manhã seguinte tudo recomeçava, prolongando-se este programa por sete meses.
No último dia costumavam os pastores confeccionar com papel multicolor uma espécie de capa que vestiam a um animal do rebanho, assim assinalando o final da dura tarefa de que se haviam incumbido.









































AGRICULTURA

Região de minifúndio em que as terras, lameiros e hortas se dividiam mais ou menos por todas as casas da aldeia, o sistema de trabalho assentava, como já se disse, na ajuda mútua que uns aos outros prestavam.
Se na utilização dos moinhos e do forno e mesmo na guarda dos rebanhos, o sistema era o de partição em cadeia, começando por uma casa e passando sucessivamente a todas as outras, já no caso dos trabalhos do campo a ordem era geralmente arbitrária.
Assim o normal era verificar-se a formação de 3 ou 4 grupos na aldeia, cada um dos quais formado por elementos de várias famílias que mutuamente se ajudavam, quer nas sementeiras quer nas colheitas, quer nos trabalhos subsequentes de recolha e tratamento do feno, das batatas e do centeio.
A formação destes grupos obedecia a conveniências várias, como a proximidade de terrenos, a semelhança de culturas, laços de família, e possivelmente até simpatias ou interesses pessoais de outra ordem.
Mal começadas as duras e desgastantes tarefas agrícolas, logo estes grupos se formavam e, uma após outra, iam levando a cabo os sucessivos trabalhos do ano. Esta ajuda estendia-se por vezes a casas de outras povoações, ocorrendo normalmente entre famílias ligadas por laços de amizade ou parentesco.
Em todos os casos a única obrigação que impendia sobre os beneficiados pela ajuda, era a de dar alimentos e bebida ao rancho dos trabalhadores, o que proporcionava animadíssimos almoços e merendas sobre as brancas e extensas toalhas de linho estendidas sobre a erva, à sombra dos carvalhos frondosos.
Hoje pouco restará deste sistema comunitário que ainda há 30 anos se podia observar e que era a base e o cerne da economia da região, sendo igualmente o cimento espiritual que ligava indelevelmente o homem do Barroso à sua terra.
Tal sistema podia no entanto sofrer excepções, pois se alguém estranho à região ali adquirisse ou arrendasse quaisquer bens ou terrenos, teria que pagar os serviços que lhe prestassem. De facto tratando-se de pessoa estranha à terra e que de nenhum modo iria retribuir o trabalho e a ajuda que recebesse, compreensível e lógico se tornava que pagasse os serviços prestados.
Para além dos trabalhos maiores em que a ajuda mútua se verificava e era fundamental, toda a gente possuía algumas courelas de menos dimensão, onde se dispunham os mimos da terra e para cujo tratamento e cultivo chegavam normalmente os braços da família.
Também para além do mais ou menos de cada um, todos possuíam determinados bens e patrimónios, fossem casas, animais de trabalho, porcos, cabras, ovelhas, etc…
Alguns poucos que não dispunham de gado próprio eram chamados “cabaneiros”, o que possivelmente significaria que apenas possuíam a “cabana”, ou seja, a casa. Estes tinham por isso que prestar alguns serviços em troca da cedência de animais para os ajudarem na lavra e nos restantes trabalhos agrícolas.
Entretanto, talvez pela diversidade de culturas praticadas na região, escassas eram as alfaias e mais ainda as máquinas empregadas no trabalho das terras. Como utensílios próprios da lavoura encontravam-se o arado, a grade, a enxada, a forquilha, a gadanha, a foice, o engaço, o sacho e a sachola, o que afinal de contas constitui o trivial que em termos de agricultura se podia encontrar por todo o país.
Os carros de bois, com as suas fiadas de estadulhos, pouco se distinguiriam dos que primeiramente por ali teriam sido utilizados. Quanto a máquinas, eram ali raras, tão raras que para além de duas ou três malhadeiras apenas vi um tractor em todas as terras que percorri.
No entanto as poucas malhadeiras existentes começavam a ter um uso mais generalizado, dado que a malhada do centeio feita a braço com um malho de madeira ou mangual, estava a cair francamente em desuso. De facto a malhada a braço, para além de extremamente cansativa, tornava-se muito mais demorada do que feita com malhadeira, embora neste caso houvesse que pagar o aluguer da máquina. Apesar disso a opção estava já a ser esta, especialmente por parte dos lavradores com maiores colheitas.
Mas com ou sem utilização de máquinas, os trabalhos obedeciam a um ritmo inalterado, primeiro uma cultura, depois outra, tanto para as sementeiras como para as colheitas. Aliás tudo no Barroso parecia por assim dizer petrificado, pois desde o vestuário à alimentação, dos dias santos às histórias contadas ao serão, nenhuma memória existia de que as coisas alguma vez houvessem sido diferentes.
Do mesmo modo o ciclo e a distribuição dos trabalhos se iam sucedendo pela mesma ordem, ano após ano, decerto desde que as aldeias existiam.
Naquele tempo, como provavelmente ainda hoje, o labor anual começava pela preparação das terras para o cultivo, seguindo-se a sementeira  das batatas e a do milho. Após isto, vinham as sachas e a sega do feno e do centeio, a que logo se seguiam a carrada, o amedamento e a malhada.
Por fim o arranque da batata, a sementeira do centeio e o corte da lenha para o Inverno. Pelo meio, um sem número de trabalhos menores, como o cultivo e tratamento do linho, as tosquias, o roçar do mato para as cortes do gado, enfim, um mundo de pequenas coisas em que todos os membros da família participavam, não era raro aliás que crianças de cinco e seis anos tivessem a seu cuidado o apascentar do gado pelos lameiros e serras.
Este ritmo, todos os anos repetido, sofria no Inverno uma compreensível redução imposta pelas condições atmosféricas, e o trabalho tornava-se então menos pesado, permitindo recuperar forças para o ano seguinte.
Centeio malhado, batatas recolhidas, palheiros cheios, lenha e feno armazenados, começavam por assim dizer os trabalhos domésticos. Era a altura de proceder ao conserto dos carros, paredes e canceles, e quando a habilidade o permitia “ajeitar” uma mesa, uns bancos, ou mesmo uns sócos.
Quanto às mulheres e raparigas, para além do corte da ferranha para o gado, teciam, remendavam, fiavam e bordavam, segundo as necessidades e habilidade de cada uma. Outras faziam as refeições, tratavam do gado, mungiam as vacas e as cabras, enfim, todo um viver decalcado dos seus ancestrais e que os anos pouco modificaram.
Era também no Inverno que ocorria a matança do porco, geralmente nos últimos dias de Dezembro, podendo estender-se mesmo até Janeiro. Para estas matanças os porcos eram engordados, ou cevados, todo o ano, sendo esta engorda feita à base de batatas, grelos, couves, nabos, tudo misturado e cozido em enormes caldeirões.
O porco era assim um bicho privilegiado no que respeita à alimentação, pois a nenhum outro animal era prodigalizada tão substancial e variada quantidade de alimentos. Poderia mesmo dizer-se que nem mesmo os próprios donos se davam tal tratamento, já que os legumes pouco entravam na sua ementa.
Quanto aos cortelhos e pocilgas, situavam-se por baixo das casas dos próprios donos, apenas separados pelo sobrado. Umas vezes por outra dava-se-lhe um pouco de liberdade, abrindo-se as portas dos cortelhos, e então era vê-los em correria desordenada até encontrarem uma poça de água, nela se rebolando e esparrinhando até ficarem completamente cobertos de lama e sujidade.
Quanto às crias, que em princípio constituíam as reservas para o ano seguinte, podiam quando numerosas ser levadas à feira, servindo também para casos em que fosse necessário fazer ofertas especiais.
O dia da matança era também um dia diferente, com um calendário bem definido e em que toda a família fazia o possível para se reunir, já que ou se esperava pelos que haviam de vir, ou então eram estes que se esforçavam por chegar mais cedo para a festança.
Dum ou doutro modo todo o mundo se preparava para a festa, a carne era fresca e abundante, a cozinha enchia-se com o fumeiro e as crianças divertiam-se tanto ou mais que os adultos.
De casa em casa toda a gente se empanzinava, uns convidando os outros, enquanto nas salgadeiras e no fumeiro os chouriços, as cabeças, e sobretudo os presuntos, eram uma alegria para os olhos e uma certeza confortante para os estômagos.
De facto, mal o Inverno começava abrandavam os trabalhos do campo, e com excepção dum ou outro dia em que o sol permitia subir com o gado ao monte, toda a actividade se circunscrevia praticamente à aldeia. Ao anoitecer, após a ceia, fazia-se pouso em três ou quatro casas, escolhidas para o serão pelas preferências de cada um, embora fosse usual que pelo menos os rapazes passassem por todas elas.
As mulheres fiavam e tagarelavam, os homens jogavam e bebiam uns copos, os rapazes diziam graçolas às moças, e no meio disto tudo lá vinham as velhas histórias de bruxas, lobisomens e almas penadas, a que mais ou menos todo o mundo dava crédito e atenção. À luz bruxuleante das velhas candeias, cercadas por fumo amarelado, vinham à superfície histórias de doenças e amores contrariados, o homem que ofereceu uma perna ao diabo, o lobisomem que comia carne humana ou a bruxa que aparecia nas encruzilhadas disfarçada de formosa rapariga.
Em baixo, na corte, o porco roncava de vez em quando, decerto aborrecido porque não o deixavam dormir em paz, enquanto pela casa cães, gatos e por vezes galinhas, iam amodorrando pelos cantos ou sob os trastes, sem qualquer interesse pelas histórias ou pelos circunstantes.
Na noite áspera o vento assobiava e não raro a neve caía em abundância, enquanto o aconchego da lareira, permanentemente acesa, convidava ao recolhimento e ao descanso.
Nestes duros Invernos do Barroso, em que a neve pende solidificada dos beirais, formando os chamados “candeeiros” e cobrindo os caminhos com uma camada de gelo brilhante e escorregadio, as aldeias ficam completamente isoladas do mundo, tornando-se muitas vezes necessário partir o gelo à sacholada para sair de casa. Em certos sítios o rio cobre-se igualmente duma sólida camada de gelo, por sobre o qual homens e animais transitam, alheios ao perigo que correm.
As árvores despidas de folhas, são verdadeiros cartões de Natal e não fora o frio e o vento cortante, apeteceria passear e apreciar demoradamente o espectáculo feérico da neve. No entanto esta neve branca, fofa e atraente, tornava-se por vezes perigosa para os que transitavam pelas serras, pois a queda contínua dos flocos acabava por uniformizar tudo, levando-os a desorientarem-se e extraviarem-se.
Escondendo os trilhos, arredondando as arestas, cobrindo as árvores e atulhando as depressões de terreno, a breve trecho todo o horizonte se apresentava como uma gigantesca manta branca, onde apenas se notavam leves ondulações.
E é assim que na uniformidade fria e insondável, o caminhante, mesmo que sendo da região, poderá perder o sentido de orientação, muitas vezes acabando sepultado sob o lençol branco da neve, apenas uma tosca cruz de pedra ficando a lembrá-lo para mais tarde.
















A TORNA DAS ÁGUAS

Nesse tempo vigorava nas aldeias um sistema de rega pelo qual cada casa tinha direito a servir-se da água pública por períodos de tempo previamente determinados.
Essa água provinha de nascentes dos montes, sendo por assim dizer canalizada por regos e valas para as terras de cultivo.
Assim, de acordo com o sistema, de tantas em tantas horas cada utilizador vedava a passagem da água para as terras dos vizinhos e canalizava-as para as suas.
A esta operação se dava o nome de “tornar as águas”, e o facto de algumas vezes, pela calma da noite, certos vizinhos menos escrupulosos desviarem indevidamente a água para as suas terras, prejudicando assim aqueles que no momento tinham direito à sua utilização, chegou a originar graves conflitos.




































PESCA

A pesca era passatempo a que as gentes da aldeia pouco se davam já que a altura propícia para a sua prática era o Verão, justamente quando os trabalhos do campo exigiam todo o tempo disponível.
Assim, tirando um ou outro moleiro mais ocupado na moagem, ou algum dos poucos que a isso por inteiro se dedicavam, - e eram raros -, tudo o mais se resumia a raras escapadelas por uma tarde de Domingo, ou ao amadorismo de qualquer veraneante. O peixe de resto também não era muito abundante e por quilómetros só três espécies povoavam o rio, - trutas, bogas e escalos.
Uns e outros aliás de reduzido tamanho, já que mesmo as trutas raríssimamente atingiam mais de palmo e meio . Claro que sempre havia quem afirmasse haver por ali peixe grosso, sendo certo que eu próprio vi um dia sob a Ponte Monim uma sombra difusa que se movia nas profundidades e que teria o seu meio metro. Mas foi tão fugidia e tão única que quase pensei ter-me enganado.
De resto, o rio tinha poucos habitantes,  como os leirões, as cobras e pelo menos um outro espécimen que uma vez entrevi, medindo dois palmos castanho encarniçados, que poderiam ser de uma lontra, uma vez que se afirmava havê-las ali.
As cobras de água eram muito numerosas e caçavam por sua conta, sendo curioso vê-las com um peixe atravessado nos dentes e ziguezagueando até à margem para, ocultas no ervaçal e entre as raízes, se banquetearem com ele.
Uma não muito usada forma de apanhar peixe a que assisti, consistia em atravessar uma rede de malha estreita de uma margem à outra, em local do rio de pouca largura e profundidade. Seguidamente um grupo de homens metia-se à água uma centena de metros acima e em fila cerrada batia furiosamente com paus impelindo assim o peixe até à referida rede.
Depois era só unir as duas pontas da rede e retirá-la do rio pejada de exemplares, maiores ou menores conforme a sorte do lanço.
Evidentemente que tal prática era proibida, como proibida era a utilização de produtos químicos que dizimavam grande quantidade de peixe. Felizmente qualquer destas modalidades de pesca era muito rara e, se surpreendidos os seus autores pelo guarda-rios, ficavam sujeitos a pesadas penalizações.
Uma outra curiosa maneira que me foi relatada, mas por cuja veracidade não respondo, consistia em o pescador (!) entrar na água e dirigir-se para uma qualquer pedra de regular tamanho, parcialmente a descoberto.
De imediato todo o peixe próximo se refugiava sob a referida pedra e nessa altura o pescador, previamente munido duma enorme marreta de pedreiro, descarregava sobre ela uma fortíssima pancada que se repercutia e vibrava até à profundidade em que se acoitavam os peixes, deixando-os entontecidos e incapazes de reagir.
Então o pescador, tomando no fundo um punhado de areia, capturava facilmente os indefesos peixes, praticamente adormecidos pelo efeito das vibrações produzidas,
Si non est vero…












CAÇA
                                                                                                                                                 
A caça era muito abundante na região, tanto em quantidade como em qualidade, razão pela qual era bastante praticada.
Claro que das espécies existentes nem todas tinham igual interesse venatório, sendo naturalmente preferidos e procurados a perdiz e o coelho, bastante numerosos.
Para além destas espécies podiam ainda encontrar-se a lebre, o gato bravo, a raposa e o lobo, os primeiros surpreendidos no acaso de uma caçada ao coelho os últimos em batidas devidamente organizadas.
Quanto às aves, e apara além da já citada perdiz, encontravam-se numerosíssimas espécies, das quais as de maior interesse seriam o pombo bravo e a própria águia.
A caça ao coelho, para além dos moldes tradicionais, era igualmente praticada com furão, embora tal modalidade fosse proibida. Em todo o caso talvez se possam compreender um pouco os costumes de um povo para o qual, dadas as carências existentes, o resultado está antes da ética e da lei.
Esta era de resto a forma usual consagrada para a caça de Inverno, já que o rasto deixado na neve pelos coelhos durante as suas sortidas nocturnas, conduziam o caçador directamente às suas respectivas tocas.
Estas localizadas, introduziam-lhe o furão e logo os coelhos saltavam para o exterior onde os aguardava o tiro certeiro do caçador.
Também de uso era armadilhar potentes ratoeiras nos tourais onde os coelhos habitualmente defecavam de noite e recolhê-las na manhã seguinte com um ou outro animal estraçalhado entre os agudos e fortes dentes do aparelho.


























CONTRABANDO

Por ali se praticava também um pouco o contrabando, coisa pouca, de arraia miúda, - uns ovos, café, tabaco, tecidos. Quase se poderia dizer que só a proximidade da fronteira, - oito ou dez quilómetros ali não contam -, empurrava as pessoas para esse tão parco comércio, apesar de tudo não isento de trabalhos e riscos.
Quantas noites, muitas de chuva grossa, a velha Clorinda, com filhos em Espanha, calcorreou aquelas serras, transportando umas pobres caixas de conserva, uns pacotes de chá, um pouco de pimentão espanhol! Para que lucros?
E quantas dessas noites a guarda, dum lado ou doutro da fronteira, a surpreendeu, devido à sua extrema miopia, apreendendo-lhe o magro fardo e fazendo-a desembestar em pragas e obscenidades que fariam corar um granadeiro!
Claro que apesar disso podia ter-se como certo que poucas noites decorridas aí estaria ela de novo a reincidir, a tentar a sorte. No entanto algumas vezes, porque lhe cheirasse a presença da guarda, ou pelo que fosse, deixava o pequeno comércio em casa de amigos ou familiares do outro lado da fronteira para recolha posterior, e então eram os guardas que ficavam logrados se acaso sucedia saírem-lhe ao caminho. Aí seria de ver a cara dela, triunfante, atirando a sua inocência de mistura com meia dúzia de pragas, perante o despeito dos guardas que bem a conheciam e não podiam acreditar que ela tivesse ido a Espanha fazer turismo.
Conformavam-se por fim e deixavam-na seguir, toda lépida e cheia de sol por dentro. Só que poucas noites depois pagava aquela pequena vitória…






























FESTA DA ALDEIA

O povo do Barroso, pela sua simplicidade aberta, por uma simbiose feliz, ou por uma gratificante compensação do destino, possui como já foi dito a faculdade de retirar alegria e satisfação de todas as actividades a que se consagra.
Talvez uma espécie de ligação telúrica com a terra e um fluído imperceptível que parece emanar das coisas do seu mundo, - da vasilha por onde bebem, das rodas dos carros que chiam, das adormecidas casas antigas -, talvez tudo isso contribua para a plenitude que sentem em cada hora que vivem.
É vê-los durante a apanha do feno, na sementeira e recolha das batatas, na ceifa e na malhada do centeio, no trabalhar do linho, e por fim no regresso à aldeia, ao pôr do sol, cantando em grupos, corpos cansados mas almas libertas e felizes.
Bem poderá dizer-se que o trabalho é ali mais uma forma de se ser simplesmente feliz, uma espécie de distracção participada por todos. Distracção e alegria era igualmente a ida à missa aos domingos de manhã, as idas à feira da Vila, e sobretudo as muitas festas que de Maio a Outubro se sucediam pelo Barroso fora, cada aldeia honrando o seu patrono.
Especialmente a festa da aldeia era o ponto mais alto do ano, em que velhos e novos, rapazes e raparigas, todos vestindo as suas melhores roupas, se esmeravam em receber fidalgamente quantos de outras terras ali vinham confraternizar e divertir-se.
Nesses dias o dia parecia ter mais de vinte e quatro horas, vivia-se como que suspenso, tudo era extraordinário e tudo era belo, desde o sermão e a procissão da manhã, com o andor e os coloridos pendões, até à festa profana, com as comezainas e os bailaricos.
Era então que o homem da concertina era rei, - isto se os proventos conseguidos pelos mordomos da festa não permitiam a contratação de uma banda de música, que era o que sucedia grande parte das vezes. Assisti a várias festas de aldeia e da festa de Frades guardo ainda uma vaga reminiscência, uma onda que sai de mansinho do mar da memória e chega quase, quase a ser presença.
E é assim, nessa sombra de sombra, que apanho que a banda de não sei onde lá esteve tocando, enquanto numa espaçosa eira novos e velhos iam dançando o “Vira”, batendo o “Malhão”.
Embora sem a preocupação de pregar os pormenores na memória para os recordar mais tarde, lembro igualmente ter havido um leilão de “prendas”. Prendas em geral manufacturadas pelas raparigas da aldeia para que os rapazes, directamente interessados nas obreiras as adquirissem em lances de garbo e ostentação, pagando por elas o que fosse necessário para se distinguirem.
Entretanto pelo dia fora sucediam-se os abraços, pois grande era o número daqueles que lá “botavam”, vindos de terras próximas e distantes. Comia-se bebia-se e bailava-se, diziam-se chalaças, e toda a gente parecia pairar nas nuvens, confraternizando com a maior alegria.
Por vezes lá vinha a ideia de ir dar um “chito”, prova em que normalmente os ganhadores eram atiradores de fama, já conhecidos pelas suas proezas. Tempos houve em que com uns copos a mais e uma palavra mais viva se armavam verdadeiros arraiais de pancadaria, pelo que também nestes casos, a partir de certa altura cada festa passou a ter a presença da guarda que obrigava a deixar armas e varapaus fora das povoações para evitar tais conflitos.
Assim o que prevalecia era a alegria, e as provas de amizade eram constantes para com os visitantes, aos quais se ofereciam várias casas para se aboletarem.
Cada festa era um laço mais a unir e ligar as várias terras e populações entre si, uns esmerando-se em receber, outros insistindo em convidar para as suas próprias festas e as suas casas.
Num ambiente de confraternização e amizade, a separação era apenas um “até logo”.









FEIRAS

Naquele tempo os feriados eram, pelo menos nas aldeias, coisa desconhecida, e apenas os dias santos do calendário litúrgico e os domingos eram respeitados. Para além destes também os dias de feira em Montalegre eram de certa maneira diferençados, pois que uma parte dos habitantes das aldeias ali se deslocavam a mercadejar as suas pequenas necessidades.
As mulheres e raparigas principalmente, mostravam-se bastante interessadas, sempre havendo uma saia, uma blusa, uns sapatos ou mesmo uns brincos a que se abalançavam. Quanto aos homens interessavam-se mais pelas alfaias, - uma sachola, um arado, uma gadanha -, e naturalmente também o gado. Uma que outra vez transaccionavam o seu porco, bicho que tal como as vacas, bois, cavalos e burros eram previamente sopesado e avaliados de todos os ângulos.
Estas feiras tinham lugar a 12 e 29 de cada mês, salvo se qualquer destes dias calhasse a um domingo, caso em que passavam para o dia seguinte. A feira anual ou feira grande, tinha lugar em fins de Outubro e atraía gente de todo o Concelho e até de mais longe, atingindo as transacções verbas já razoáveis.
Tais feiras eram além do mais pretexto para reencontros de velhos amigos de aldeias distantes, e entre um e outro copo ouviam-se as novidades do Concelho, algumas já não muito recentes.
Cirandando despreocupadamente por tendas e tabuleiros, apreciavam-se os artigos expostos, dava-se uma vista de olhos pelos estabelecimentos da Vila, e se possível tratava-se de qualquer assunto guardado para a oportunidade.
Nestas feiras vendia-se e comprava-se geralmente tudo o que a região produzia, mais o que de fora vinha em camionetas, incluindo gado e alfaias agrícolas. O barrosão é vivo no pedir mas tardo no comprar, sempre às voltas e mostrando-se pouco interessado em qualquer artigo, mesmo que ele lhe interesse bastante.
Geralmente quando se trata por exemplo de uma cabeça de gado, vê bem o animal e depois pergunta o preço, mostrando-se quase chocarreiro perante o montante pedido, mesmo que esteja abaixo do que ele supunha. Faz então uma oferta substancialmente inferior ao pedido e que naturalmente não é aceite, até porque do outro lado o vendedor também sabe a cartilha.
Aí ele abala e vai borboleteando por aqui e por ali, vendo este animal e aquele, sem qualquer interesse especial, apenas para que o primeiro vendedor se aperceba de que ele não faz muita questão de preferir o seu.
Um pouco mais tarde, uns copos bebidos com uma patanisca de presunto, passa sornamente pelo dono do primeiro bicho, olho aparentemente desinteressado, inquire se ele “sempre está ou não disposto a fazer negócio”. Não está, diz o homem e diz o riso do homem, significativo de que não se deixa embair pela manobra.
“Então bom negócio”, diz o pretendente, e como que abala, desaparecendo às vezes do recinto da feira por algum tempo, o suficiente no seu entender para que o vendedor dê ao diabo a sua intransigência. Por fim lá aparece de novo, desta vez nem se acercando do vendedor, como que já desinteressado do negócio, mas sempre alerta para qualquer gesto ou para o aparecimento doutro pretendente.
Muitas vezes a coisa resulta, o vendedor acena-lhe e transigindo um pouco desce duas ou três notas ao último preço. Um que não, outro que sim, o negócio fecha-se na tasca ou no café, um deles pagando geralmente uns copos.
Outras vezes o negócio falha, ou porque outro se meteu de permeio ou porque nenhum cedeu o suficiente. Neste caso é normal arrependerem-se os dois.
Quanto a géneros, roupas, alfaias, sementes, calçado, ourivesaria e outros mimos da civilização distante, também tudo se transaccionava com mais ou menos esperteza de um e de outro lado, nisto as mulheres não se mostrando nada inferiores aos homens.
Feiras cheias de cor e movimento, alegres e trepidantes, elas eram muito mais animadas que as sofisticadas e anónimas feiras do sul. E eram também pretexto para uma fuga ao quotidiano, entreabrir de mundos que mal se conheciam, anúncio de sonhos que se tornavam mais próximos. Para os cafés e tascas da Vila, eram também os dias de ouro do mês, pedra de animação no charco parado do negócio de todos os dias.
Ao entardecer, às vezes já noite aberta, regressavam às aldeias, cada grupo derivando ara os caminhos e veredas que através dos montes os levariam a casa. Amenizando a caminhada saltava então o relato das histórias vividas, as peripécias dos negócios, a apreciação das alfaias e animais adquiridos. Tudo exteriorizado, tudo tão completamente sentido como fora vivido, numa entrega total a cada acto e a cada momento do dia e da vida. E assim em grupo cantarolando pelos caminhos, a bandeira da alegria subia sob a lanterna esfusiante da Lua que despejava prata no rio.
Enchia-se a existência e era-se feliz!










































BARROSO

Por aquelas serras, os caminhos irregulares e volteantes, marcados pelo passar das gentes ao longo dos séculos, fazem a ligação entre as aldeias distantes, nalguns casos com as povoações espanholas da raia.
Geralmente confundindo-se com estes caminhos e veredas, surgem-nos, por vezes bastante desviados, os sulcos mais largos e profundos da passagem da “vezeira”. Aí, as patas cascudas e o retouçar continuado de ovelhas e cabras, descarnam o solo, traçando como que um rio esbranquiçado e largo, de superfície de pedra.
Por aí todos os dias, de Outubro a Maio, sobem e descem em avalanche os grandes rebanhos em procura dos pastos ralos do Inverno, enquanto no restante do ano tal transito continua, mas agora já em pequenos grupos, dada a abundância e a proximidade de pastos mais próximos.




































TROVOADA

Faz esta noite trinta e um anos que assisti à maior trovoada da minha vida, uma trovoada de tal violência que se acaso tivesse ocorrido em Lisboa certamente teria arrasado grande parte da cidade.
Estava de férias em frades, no Barroso, e recordo que a intensidade dos trovões era de tal ordem que toda a casa estremecia e os móveis dançavam desordenadamente.
Num minuto o Bento da Pereira registou cinco descargas sobre o pára-raios da sua casa e a certa altura os habitantes, verdadeiramente alarmados, saíram para a rua em grande alvoroço.
Em Sezelhe um palheiro pegou fogo, atingido por uma faísca, e incendiou-se apesar dos esforços da população e da ajuda vinda de Frades e doutras povoações. Eu próprio fiz parte dos que andaram a transportar baldes de água para ajudar a extinguir o incêndio, enquanto no alto os trovões ribombavam e os raios e faíscas riscavam o espaço, numa girândola de luzes.
A certa altura da noite, já de volta e recolhido ao meu quarto, cheguei quase a temer que a casa e mesmo parte da povoação acabassem sendo arrastados para o rio, tal a violência e o estampido dos trovões.


































DIAS DO NORTE

No café de Montalegre, o Transmontano, o ambiente era sombrio, com pouca luz, só animado quando a sala se enchia com os jogadores de damas ou bebedores de cafezinhos. Também havia uns gabinetes reservados para os jogadores de cartas, num dos quais joguei um dia o Poker com vários parceiros de que só recordo um tal Peixoto, creio que reformado da Guarda-Fiscal.
E jogava, claro, as damas, ou com o Albertino sapateiro, ou com um indivíduo que vinha propositadamente de Tourém, - cinco horas a pé para cada lado -, ou ainda com o Morais, moço ainda novo, empregado na Fazenda, como lá se diz dos empregados das várias repartições oficiais.
Também noutro café, o Terra Fria, joguei algumas vezes o bilhar com o Amadeu e igualmente as damas com o barbeiro, que aliás jogava pessimamente. Uma noite demorei-me neste café até altas horas, jogando e perdendo ao Burro Americano com uma roda de parceiros, um dos quais o próprio dono do café, que me deu depois alojamento em casa dele, visto ser perigoso regressar sozinho à aldeia a altas horas da noite, por causa dos lobos.
Em Setembro fui à festa da Senhora da Vila de Abril, Santa que se venera num alto monte em uma capelinha perdida, por onde só raros pastores passam de longe em longe. Cá fora, deitado de bruços sobre um vetusto penedo, enquanto o padre oficiava e as gentes que não cabiam na capela se espalhavam pelo adro, também eu ouvia a minha missa, dita pelo vento e acompanhada pelo sussurro das árvores. Depois a procissão saiu, seguida pela multidão e deu várias voltas ao adro no meio dos cânticos e rezas, enquanto o Sol brilhava esplendorosamente no céu.
Desse dia guardo uma fotografia tirada junto a uma cruz de pedra que ali próximo se encontra, debruçada do alto sobre os vales.
Depois seguiu-se a festa profana em que, pelo dia abaixo, comi, dancei, atirei à pedra, enfim, vivi.



























FESTAS E DIVERSÕES

Com o Manuel Alfaiate, de Sezelhe, e alguns mais da mesma povoação fui uma noite para São Pedro, onde de imediato se organizou animado baile que durou até às tantas. 
Já não me recordo se em resultado de combinação prévia, se por mero capricho meu, saí de Frades para Sezelhe sozinho, já bem de noite, pelo caminho velho. Levava como forma de afugentar os lobos, -pensava eu -, uns quantos feixes de palha a que ia sucessivamente lançando fogo, e assim os empunhando lá fiz o trajecto entre as duas povoações. Não muito descansado, já que os feixes apenas duraram até meio do caminho e a partir daí nada mais tinha para me proteger. Assim que chegado a Sezelhe, logo se formou um grupo de rapazes, que com o referido Manuel Alfaiate à frente, tocando concertina, se dirigiu para São Pedro, onde devemos ter chegado já para além das onze.
Logo alvoroçámos rapazes e raparigas daquela povoação e em pouco tempo se formou um bailarico num sobrado. A determinada altura fez-se uma pausa para comer, tendo o repasto constado de carne cozida com batatas, já que nesse dia havia sido abatida uma vaca que partira as pernas numa queda por uma ribanceira.
O facto é que ou a vaca era velha ou a carne estava mal cozida, possivelmente por a haverem cortado em grandes nacos quadrados que terão prejudicado a cozedura. Fosse como fosse foi-me difícil mastigá-la.
Após a festa, já bem tarde, regressámos a Sezelhe, onde eu, o Alfaiate e mais alguns, ainda andámos percorrendo as ruas, tocando e cantando ao desafio, não deixando dormir os habitantes. Fizemos até uma serenata debaixo das janelas das professoras, que foi coisa de ouvir…
Por fim regressei a Frades, também já não me recordo se sozinho se acompanhado por alguns deles. O mais provável – e tenho disso uma vaga reminiscência -, é de ter sido acompanhado, até porque o Alfaiate, que não era nada alfaiate, catrapiscava a minha prima do Luciano e não se escusaria a acompanhar-me na previsão de um encontro ocasional.
Outro acontecimento que saiu do trivial foi a ida à Senhora da Livração a Boticas, a qual ocorreu por volta de 19 a 21 de Agosto de 1950. Rapazes e raparigas em bom número, subimos para uma tosca camioneta de carga, previamente contratada não sei por quem, e lá seguimos para Boticas, cerca de 40 quilómetros para o sul. Todo o mundo cantava e alardeava a melhor disposição.
Chegámos ao anoitecer de 6ª feira e por intercessão não sei nem vi de quem, fomos alojados a monte numa espécie de armazém de produtos agrícolas e alfaias, pertencente a um natural de Boticas.
No dia seguinte, cada aldeia formando um grupo, entrámos verdadeiramente na festa. No enorme largo fronteiro à Igreja, dezenas e dezenas de concertinas tocando a um tempo, cada uma para seu grupo de bailadores faziam uma algazarra infernal.
O Belino (suponho que deturpação de Avelino), que por causa da Teresa do Coelho  estava em guerra com os irmãos dela – embora participando na festazinha, um olho atrás, outro adiante, precavendo-se contra qualquer inopinado ataque. Sim, porque ali não se brinca às zaragatas, - é a doer!
Em todo o caso nada sucedeu e a festa continuou pelo dia fora, cada vez com maior animação, pois além do chinfrim das concertinas, três bandas de música haviam chegado e atroavam os ares com os seus instrumentos. Uma creio que era de Guimarães, outra de Murça, e a terceira não cheguei a saber. No largo atrás da Igreja disputou-se, - ou foi no Domingo? -, um jogo de futebol em que um dos participantes era o desportivo de Chaves, equipado de vermelho. Não sei o que almocei nesse dia, apenas me lembrando de encontrar um tal oliveira, dono da farmácia de Boticas e que em Frades alugara um campo de batatas.
À noite demorei-me até tarde e quando me dirigi à casa onde me haviam dito que pernoitaria, e onde era suposto estar um filho do dono, ninguém respondeu às violentas batidas que descarreguei na porta, pelo que regressei ao recinto da feira. Aí fui falar com a dona da casa, que tinha lá uma barraca de comes e bebes, e contei-lhe não estar ninguém em casa, mas perante a garantia dela de que o filho agora estaria lá de certeza, voltei de novo e de novo sem resultado, já que mais uma vez ninguém atendeu ou abriu a porta. Fiz este trajecto ainda uma vez, com o mesmo resultado, pelo que devo ter palmilhado inutilmente mais de quatro quilómetros. Por fim, transido de frio, enrolei-me na gabardina e acocorei-me junto à fogueira existente na barraca da referida feirante, e assim cabeceando lá passei a noite.
De manhã, finalmente, eu e o belino conseguimos arranjar um quarto para descansar umas horas, não sei como nem onde. Dormimos até cerca do meio dia, como era natural depois da seca da véspera, e por isso perdemos a corrida de bicicletas, a “chega” e a saída da procissão, à qual só já assistimos nos momentos finais.
Durante o Domingo a festança e o bailarico continuaram, até que pelas 16 horas e por combinação com o dono da camioneta, houve que regressar. Dado no entanto que o referido camionista receava ser surpreendido pela G.N.R. transportando pessoas na camioneta, indicou-nos que esperássemos por ele no Alto do Eiró, 4 quilómetros acima, que ele passaria ali pelas 17 horas e nos recolheria. Nesta conformidade, eu o Belino e o Manuel Alfaiate, aceitámos a ideia e dirigimo-nos para o referido ponto, subindo a pedregosa encosta que ali conduzia.
No entanto as horas foram passando e da camioneta nada. Mortos de cansaço como estávamos, acabámos por adormecer e quando despertámos, na vala da estrada onde nos havíamos encolhido, era quase uma hora da madrugada. Na indecisão decidimos seguir a pé até ao sítio onde a estrada entroncava na outra que vinha de Boticas, e que o camionista nos dissera não poder seguir por causa da G.N.R.
Aí chegados, e acordado um indivíduo que dormia debaixo dum telheiro, afirmou-nos ele que a referida camioneta passara cerca de meia hora antes em direcção ao Barracão, tendo o motorista afirmado que não nos vira. Fazendo das tripas coração, metemos mais uma vez a caminho, então já sob uma chuva miúda e assim chegámos ao Barracão pelas 3 horas da manhã.
Estendemo-nos então num Jeep ali estacionado e pelas nove horas da manhã seguinte, tomámos finalmente a carreira para Montalegre, dali tendo seguido, ainda a pé, para as respectivas terras, oito quilómetros além!





















CAÇADA

Em determinado dia saímos para a caça, eu e alguns caçadores de Frades, acompanhados, - eles -, dos respectivos cães.
Seríamos uns dez e saímos por volta das 7 horas da manhã, a caminho dum vale dominado pela Pedra do Esporão, local onde me atrasei para fazer uma necessidade.
De cócoras entre o mato rasteiro do fundo do vale, enquanto os outro seguiam pela crista do cerro, apercebi-me a certa altura de que os cães lá em cima perseguiam um coelho, o qual pela direcção que os cães tomavam devia vir passar próximo do local onde eu me encontrava.
Pelo sim, pelo não, como tinha a espingarda ao lado, pu-la em mira e em posição de fogo, mantendo-me de cócoras e de calças em baixo. Repentinamente o coelho, perseguido a grande distancia pelos cães, surgiu em carreira desabalada uns metros à minha frente. Surpreendido com a minha inesperada presença e com um grito que lhe dirigi, estacou antes de refazer a direcção da fuga, o que me deu tempo para disparar, embora sem saber se lhe acertara pois deu meia volta e desapareceu.
No alto cerro, lá mais adiante, os outros caçadores assistiam na expectativa, pois tinham seguido os cães e apercebido a cómica situação. Então calmamente pousei a arma ao lado, subi as calças e compus-me, dirigindo-me seguidamente para o local onde o coelho surgira, a fim de verificar se o teria atingido.
Assim fora, alguns tufos de pelo nos arbustos atestavam que ele fora efectivamente atingido, mas dado que fugira, talvez o tiro o tivesse apanhado apenas de raspão.
Comecei então procurando pelas moitas e arbustos e uns metros afastados deparou-se-me efectivamente o pobre bicho, ainda esperneando, mas já nas vascas da agonia. Levantei-o no ar como um troféu e lá em cima foi o gáudio entre os outros caçadores, aos quais estava ainda reservada a surpresa, _ e a mim não menos…-, de me verem matar mais dois coelhos até às dez horas da manhã, antes que qualquer deles tivesse morto um só que fosse.
A explicação era fácil e devia-se não a que eu fosse caçador ou disso entendesse alguma coisa, mas ao facto de ser o único que não conhecia as “portas” de caça e que não tinha cães.
Quer dizer, eles colocavam-se nos pontos estratégicos, circundados por clareiras por onde os cães tentavam empurrar os coelhos, e eu como nada sabia, colocava-me em qualquer lado, sem a preocupação de esperar que os cães me trouxessem os coelhos ao alcance. Acontecia que os coelhos trocavam as voltas aos cães, fugindo dessas clareiras, e vinham passar próximo de mim, que era sítio sossegado e sem os cães a persegui-los.
Depois era a sorte de disparar e acertar, deixando os caçadores embatucados, já que com cães e tudo, nada conseguiam.
Desde essa manhã fiquei conhecido na aldeia como “o tipo que matou um coelho com as calças na mão”. Que aliás nem fora o meu primeiro coelho.
De facto esse conseguira-o ainda antes do outro, mas inexperiente como era, não me apercebi de lhe ter acertado e deixei-o comer à cadela do Gervaz da Costa, do que só me dei conta quando ela me apareceu, vinda da zona onde eu alvejara o coelho, toda cheia de pelos e com sangue no focinho.
Resta dizer que durante os sete meses que lá passei não consegui mais coelho nenhum…








ROMARIAS

Para além das festas da aldeia de que atrás falámos, inúmeras outras se realizavam relacionadas com capelas e santuários situados longe das povoações, quase sempre no píncaro dum monte. Estas festas ocorriam em datas fixas, atraindo a si grande número de pessoas que de todos os quadrantes ali se dirigiam em peregrinação.
Uma das mais importantes tinha lugar a 8 de Setembro, ma Sra, da Vila de Abril, nome da Santa que se venerava num alto monte entre São Pedro e Contim, numa capelinha perdida, por onde só raros pastores passavam de longe em longe.
Manhã cedo, longas filas carregando merendas, a pé, de burro ou a cavalo, homens e mulheres vencendo veredas e pedregais, dirigiam-se para o alto sob o céu glorioso, às vezes ainda ao clarear a madrugada.
Chegados ao cimo e amarrados os burros no giestal próximo, multiplicavam-se as exclamações e os abraços a amigos e conhecidos doutras terras, após o que todos se dirigiam para a capela, acabando por encher o adro e extravasando para o exterior.
Após a missa a procissão saía com os pendões engalanados e o andor desde cima do qual a Virgem a todos sorria e abençoava. Seguida pela enorme massa do povo, circundava várias vezes a capela, num percurso todos os anos repetido, acompanhada de cânticos e rezas em que cada um punha o maior fervor.
Terminada a procissão, cada família ou cada grupo puxava do farnel e espalhando-se pelos relevos do terreno, sob a sombra das árvores, ia-se banqueteando com os mimos trazidos,
Como não podia deixar de ser, logo apareciam as concertinas e se organizavam os bailaricos, em que os tocadores mais famosos juntavam à sua volta o maior número de pares, novos e velhos. Pela tarde fora todos rodopiavam num fandango, um malhão, ou já numa dança mais citadina, enquanto as cantigas do reportório das diversas aldeias se cruzavam nos ares.
Por fim era o regresso às povoações perdidas nas dobras das serras cada grupo tomando o seu caminho e soltando os seus cantares, após as despedidas amigas e calorosas aos confrades doutras terras.
Pelas serras abaixo, nos quilómetros que separavam o santuário das aldeias, toda a simplicidade, toda a alegria de viver, extravasavam em canções e risos. Deste dia uns quantos episódios ficavam na memória por algum tempo, - namoricos, noivados, bebedeiras mais animadas ou destemperadas -, enfim, um mosaico da vida em que a alegria pintara as cores.
Então a vida era uma estrada aberta ao sol, bordada com as flores de todas as esperanças e o perfume de todos os sonhos!
Como esta muitas outras romarias se efectuavam durante o ano, podendo citar-se a da Sra. da Saúde, em Fiães, que embora mais moderna e manos conhecida, nem por isso deixava de registar grande afluência.
De maior importância, e já com um cunho mais ou menos cosmopolita era a festa do Senhor da Piedade, que se celebrava próximo de Montalegre no primeiro Domingo de Agosto, e sobretudo a Sra. da Livração, em Boticas, igualmente em Agosto.
Nesta última, durante três dias e três noites a Vila torna-se quase cidade, o movimento é incessante, o ruído ensurdecedor, os bailes às dezenas, come-se à grande e bebe-se à larga. O povo do Barroso trabalha quando trabalha e folga quando folga.
Ali toda a gente canta e pula, e as barracas de comes e bebes não têm mãos a medir. A noite é iluminada pelo fogo de artifício e só pela madrugada alguns se rendem ao cansaço e ao sono, embora poucas horas decorridas e retemperados por um breve descanso voltem de novo à primeira fila.
Na Sra. da Livração, para além da festa religiosa, com a respectiva procissão e o andor da Virgem, com a respectiva procissão e o andor da Virgem pejado de notas oferecidas pelos fieis, assisti ainda e uma “chega” de bois, um jogo de futebol e até a uma corrida de bicicletas!
Isto em Trás-os-Montes e em 1950!










MÚSICAS, DANÇAS E CANTARES

Como se depreende, uma das figuras em foco em todas estas festas, feiras e romarias era o tocador de concertina, personagem cuja fama circulava de aldeia em aldeia, até bem longe. Naquele tempo havia em São Pedro um tocador famoso, o Augusto, mais conhecido por Beira-mar, que era o animador habitual de todas as festas e bailaricos daqueles termos.
Tinha uma concertina modesta, mas que tocava bastante bem, e a sua presença era sempre sinal de festa bastante animada. Falava-se também num tocador de Brandim e doutro das Alturas, mas um e outro eram mais conhecidos nas terras de rio abaixo, dado viverem para esses lados. Para além destes, outros faziam a sua perninha, já que em todas as terras havia um ou outro possuidor de concertina capaz de dar um geito.
Também nas festas de casamento, como já se referiu, eram estes tocadores os encarregados de animar os bailes e sobretudo, de acompanharem os cantadores que sempre apareciam para “encomendar” a noiva, como lá se dizia.
Igualmente eram eles que nas cantigas ao desafio, especialmente na “Vareira” e na “Cana Verde”, acompanhavam os cantadores nos seus longos e animados despiques, assim se tornando participantes activos nas manifestações mais típicas do Barroso.
Com efeito estas cantigas ao desafio são parte integrante do Cancioneiro do Barroso e não dispensam o acompanhamento musical, como aliás sucede com a maior parte dos cantares locais.
O Cancioneiro, embora assente num contexto próprio, por vezes lírico, mas quase sempre simples e directo, não deixa ainda assim de acusar influencias próximas, o que igualmente se reflecte no acompanhamento musical.
De facto, confinando com Chaves, Boticas, e sobretudo do Minho, os da extrema barrosã recolhem dessas terras e até da própria Galiza, modas desconhecidas que depois se espalham pela região, muitas vezes com músicas e termos próprios.
O cantar das suas gentes, umas vezes vivo e gaiato, outras atirando para o dolente, não deixa de ter expressão e sentimento, especialmente quando exprime partidas e ausências. Dum ou doutro modo o facto é que o povo do Barroso aprecia cantar, assim abrindo o seu coração e deixando entrever muito da sua vivência e dos seus sentimentos. A cantar diz o seu medo e a sua saudade, a cantar expressa conceitos e provérbios, a cantar profere as invocações e esconjuros tradicionais.
Para além de tudo isto e como primeiramente se referiu, exprime-se ainda em cantigas ao desafio, de que as já citadas “Vareira” e “Cana Verde” são o mais significativo exemplo.
Numa e noutra os cantadores vão jogando os seus botes em tiradas chistosas e de sequência notável, já que geralmente se trata de improvisadores dotados de grande imaginação.
Ainda que expressas em termos próprios e muitas vezes num português pouco ortodoxo, a riqueza das imagens, a justeza das analogias e o sentido satírico, atingem por vezes níveis insuspeitados.
Nestas cantigas ao desafio a já referida capacidade de improvisação faz com que ao enfrentarem-se dois bons cantadores, a função se prolongue pela noite dentro, cada um dando ao outro a réplica mais acertada.
Quanto às vozes, são naturalmente as mulheres e raparigas que mais harmoniosamente se exprimem e cantam, embora exagerando por vezes nos agudos.
Isso nota-se especialmente nos grupos e coros que se ouvem nas festas e romarias, nas quais as vozes femininas soam mais harmoniosas enquanto as dos homens parecem chocar de esquina.






CELEBRAÇÕES RELIGIOSAS

Para além das cerimónias religiosas consagradas aos santos patronos de cada povoação ou das ermidas perdidas nos montes, várias outras celebrações do calendário litúrgico se vão cumprindo ao longo do ano. Paralelamente e com carácter de regularidade celebra-se também a missa dominical, enquanto nos meses de Maio e Outubro tem lugar a consagração do Terço à Virgem de Fátima.
Nesse tempo a missa dominical era bastante celebrada por rotação entre as aldeias, já que cada sacerdote pastoreava simultaneamente várias povoações e por isso oficiava sucessivamente um Domingo em cada uma delas. Assim por exemplo, o padre residente em Cambezes prestava também assistência religiosa às povoações de Frades e Sezelhe, creio que integrantes da mesma freguesia.
Quanto ao Terço integrado à Virgem de Fátima, rezava-se diariamente nos meses de Maio a Outubro na capela da aldeia pelas Trindades. O celebrante era em geral um habitante do povoado, homem de formação religiosa e mais dado a leituras, o qual retirando da Bíblia um motivo, conduzia as orações e ladainhas inerentes ao acto.
A capela de Frades, implantada num declive no meio da povoação, não tinha adro e a torre sineira ficava-lhe em frente, do outro lado do caminho de acesso. Nestas capelas de aldeia, construídas de pedra áspera talhada em grandes blocos rectangulares, colhe-se uma sensação de frio e de austeridade, de mistura com o cheiro a cera, incenso e poeira velha.
Tudo junto, o ambiente torna-se realmente impressivo e sugestionante, predispondo para o recolhimento, a meditação e talvez a Fé. Digo talvez a Fé porque, embora não necessariamente no que se refere à consagração do Terço, em muitos casos é a crendice que impera. De facto, e como já se significou, tanto nas aldeias como na própria Vila de Montalegre, a religião e a crendice seguiam muitas vezes a par, de vez em quando uma resvalando para o campo da outra.
Do nascimento à morte, o habitante do Barroso movimenta-se e evolui numa sociedade e num mundo em que a superstição e o fantástico constituem quase uma tradição. Isto talvez porque, não obstante o seu arreigado sentimento religioso, certa disposição para a credulidade e algumas interpretações facilitadas da doutrina cristã, ajudavam e abriam a porta à aceitação do sobrenatural, jungindo por vezes a razão ao mito.
Tal facto parecia aliás ser indiferente à Igreja, daqui podendo inferir-se que tais crendices funcionassem como elemento aglutinador, ajudando a empurrar para o seu seio as gente dominadas pelos medos da superstição. De resto as próprias romarias e festas religiosas assumiam por vezes, sob determinados aspectos, um ar de paganismo indisfarçável, muito embora as procissões, andores e figuras bíblicas pudessem ser tomados como simples manifestações dum culto indubitavelmente sincero e honesto.
Se por nossa parte não pomos minimamente em causa a honestidade e a sinceridade dos sentimentos religiosos que assim se exprimiam, não poderemos por outro lado recusar a evidência do cunho pagão imprimido a alguns aspectos exteriores dessas festividades. Cunho pagão que aliás ressalta doutras práticas e costumes seguidos na região, onde se associam por vezes aos trabalhos do campo e aos acontecimentos e cerimónias de maior relevância, manifestações de carácter e simbologia pagãs.
Daqui poder dizer-se que se a sua formação espiritual resulta da observação firme dos preceitos religiosos, ela comporta igualmente a aceitação de crendices e superstições primitivas.
A par das repetitivas orações de culto, e a provar o que atrás se disse, este povo simultaneamente religioso e crédulo, dispunha de um verdadeiro arsenal de agouros, rezas e benzeduras, capazes de afastar o diabo mais empedernido e propiciar a sorte mais risonha. Assim para cada perigo ou mal havia uma reza, para cada doença uma oração, as mais das vezes um ritual de esconjuros e benzeduras que passando a leste da medicina, nem por isso dispunha ali de menor crédito.
No plano material bastava àquela gente a satisfação duma vida simples embora sacrificada, mas em todo o caso plenamente preenchida. Quanto ao plano espiritual, Deus era ali absoluto, presente mesmo quando não referido, amado e temido em cada átomo do tempo e do espaço. O habitante do Barroso, pequeno ante a grandiosidade e a majestade da Natureza, para tudo tinha como arrimo e explicação a presença divina.
Não mais perfeito que os outros, mas mais temente pela salvação da sua alma, isso o impedia talvez de se revoltar contra a crueza da vida e as perseguições da má sorte, mesmo aí encontrando e aceitando os desígnios de Deus. Nas horas de ventura como nas de desespero, sempre a luz do céu lhes aparecia e iluminava aquelas almas, sempre para elas e em tudo estava presente o dedo divino. Fé simples sem grandes maneirismos, paganismo ingénuo misturado com a mais severa ortodoxia, tudo ali era límpido e claro, devoção de dois mais dois são quatro.
Cultivando esta devoção o Sr. Abade, as dezenas de Srs. Abades que numa presença tão desapegada e quase tão sacrificada como a dos seus paroquianos, por ali gastavam o tempo e a vida na meditação do Evangelho, nos ensinamentos de Cristo, às vezes também no roçagar de paixões e interesses como os dos homens comuns.
Representante e zelador dos altos desígnios divinos, ele constituía ali a autoridade suprema e incontestada, a sua palavra tomada como exemplo, a sua saudação quase um favor, a sua presença um privilégio.
Primeira e mais alta personalidade das aldeias e da própria Vila, suscitava-se-lhe a companhia, requeria-se-lhe o conselho, convidava-se empenhadamente para os acontecimentos de carácter social e as festas de família.
O seu ascendente era indiscutível, quase sendo encarado como um representante que pessoalmente recebia e dava informações ao céu. Filho geralmente de famílias ricas ou pelo menos abastadas da região, sentiam-se estas especialmente honradas e desvanecidas com o facto de um dos seus membros ter acesso directo à cadeira divina. Por isso um padre na família era naquele tempo uma honra sem preço, e se a esse padre pudesse juntar-se uma irmã freira a glória tornava-se completa. Hoje não será tanto assim, mas o sacerdote continuará talvez a ser a personalidade mais respeitada do Barroso, pelo menos a nível das aldeias.
No plano temporal, mas também igualmente conceituados, eram os representantes da G.N.R., autoridade tão respeitada no plano social quanto espiritualmente o era o padre. Faltava-lhes evidentemente o lustre, a preparação, o verbo, e daí o sentirem-se tão acima do povo quanto abaixo da Igreja, à qual aliás respeitavam e veneravam tanto como o próprio povo.
Ainda autoridade, embora de menos relevo, era o cantoneiro, susceptível de poder aplicar multas aos donos dos animais que atravessavam estradas desbastando sebes e saltando valados, tasquinhavam e destruíam a seara alheia.
Por fim o guarda-rios, cuja acção fiscalizadora podia igualmente causar problemas aos candidatos a pescadores, nem sempre, como já foi dito, utilizando os métodos de pesca autorizados pela Lei.












CERIMÓNIAS FÚNEBRES

Quando alguém morria era geralmente sepultado com o que de melhor tivesse para vestir, pessoas havendo que guardavam durante anos o enxoval para o seu noivado com a morte.
Um caso conheci em que um lavrador comprara em Espanha umas botas que nunca calçou porque estavam reservadas para levar no caixão. Parece que ele havia conhecido ou ouvira falar dum tempo em que os mortos eram sepultados em esquifes, envoltos num simples lençol e calçados com umas sapatilhas de papel.
Talvez por isso mostrava grande receio de que o calçassem com tais sapatilhas quando chegasse a sua última hora, pois como afirmava, “quero ir bem calçado, porque o caminho é áspero e a jornada longa”. E rindo, embora, sentia-se que ele não estava verdadeiramente a brincar.
Já lá está, coitado, e espero bem que as suas botas o tenham levado aonde ele gostaria de chegar. Sendo este caso um exemplo da superstição reinante, não passa afinal duma mostra da reverência humana perante os mistérios do Além.
Quanto ao funeral, era uma cerimónia que a par de situações humanas próprias da ocasião, se revestia de particularismos interessantes, conforme me foi dado observar pessoalmente na aldeia de Contim.
Assim, após a apresentação de condolências aos familiares do finado e uma recolhida mirada ao caixão, exposto num compartimento contíguo, iluminado a velas, eram os recém-chegados conduzidos a uma sala onde se aglomeravam já, quando eu cheguei, numerosas pessoas.
Aqui tive a minha primeira surpresa, já que todas as pessoas que iam chegando depositavam moedas numa bandeja ali colocada, ritual que eu não cumprira por em absoluto o desconhecer. Não se estranhará esse desconhecimento considerando ser este o primeiro funeral a que eu assistia no Barroso. De qualquer modo, e segundo deduzi, a importância assim reunida destinar-se-ia a contribuir para os custos do funeral, ou talvez para mandar rezar missas por alma do defunto.
Muito naturalmente, à entrada de cada visitante os familiares do defunto, recordando decerto acontecimentos em que o recém-chegado com ele participara, exprimiam em altos gritos a sua dor. Assim a cada pessoa chegada os gritos recrudesciam, vindo a atingir o auge quando, saído o préstito fúnebre, este passava sob as janelas onde as mulheres expressavam o seu desgosto em choros impressionantes.
Entretanto, chegados à igreja, outra surpresa me aguardava, esta não menor. Efectivamente de ambos os lados dos amplos portões do adro, grandes cestos de pão e alguns cântaros de vinho esperavam os acompanhantes, os quais cumprindo certamente outro ritual para mim desconhecido, se serviam descontraidamente dum e doutro. Disseram-me depois ser hábito antigo, a que davam o nome de “carolo”, oferecer pão e vinho aos que honravam o morto, acompanhando-o à última morada.
Que assim fosse, para mim tal costume, apesar de impressivo e puro, mais se afigurava reminiscência pagã de qualquer antigo culto do que inerência própria duma cerimónia fúnebre dos nossos dias.
Os passos seguintes, já bem menos significativos, consistiram em circundar várias vezes o adro da Igreja com o caixão transportado em ombros, num cortejo encabeçado por quatro sacerdotes que iam salmodiando e encomendando a alma do morto, recolhidamente acompanhados pelo murmurejar do povo que os seguia.
Cabe dizer que Contim não tinha cemitério, sendo os mortos sepultados no adro onde repousa há sessenta anos minha avó paterna e onde a Eternidade parece tornar-se palpável.
De resto tempo houve em que nalgumas povoações os mortos eram sepultados dentro da própria Igreja. Isso no entanto pertencia ao passado e mesmo casos como o de Contim deviam ser já bastante raros.
Em Montalegre, por exemplo, o cemitério tinha já o aspecto de um pequeno cemitério de cidade, e se por alguma coisa valesse ser citado era apenas pelo facto de a proporcionalidade de mortes deduzida dos epitáfios nos mostrar que por cada adulto ali jaziam seis ou sete crianças.
Resultado afinal eloquente das carências existentes, as quais embora suportadas por todos, atingiam principalmente os mais fracos. Com efeito, alimentação, conforto, higiene, cuidados médicos, tudo ali era precário e insuficiente, sendo logicamente as crianças as mais atingidas.
De facto a infância constituía ali uma espécie de prova de fogo que muitos não conseguiam passar.












































ALMINHAS E CRUZEIROS

Desde os tempos imemoriais em que o homem sacrificava aos deuses e honrava os seus mortos construindo monumentos que ainda hoje perduram, sempre o fenómeno da morte impressionou fundamente os espíritos.
De facto, apesar de escarmentado pela garra dos séculos e todos os dias confrontado com o materialismo  mais aceso, nem por isso o espírito humano deixou de crer, - e de querer -, que para além da vida haja um longo caminho. Isolado no seu próprio mundo não poderia o homem do Barroso constituir excepção, e por isso, talvez mais que qualquer outro, ele soleniza e por assim dizer mitifica tudo o que com a morte se relaciona.
Desde logo porque, para além da dor de perder alguém que fez parte da sua própria vida e que consigo participou em acontecimentos comuns, ele acredita efectivamente na existência do Além, assim como na influência que desse Além os mortos podem exercer sobre os vivos.
Por isso o mundo impresente que a generalidade das igrejas mantém vivo aos olhos dos crentes, é ali entendido e inteiramente aceite, a ninguém ocorrendo que a morte possa ser o fim da viagem. Nesta convicção e temeroso respeito se integra a construção das chamadas “Alminhas”, curiosos habitáculos de pedra, ladeando os caminhos e contendo num nicho imagens rodeadas de velas e flores.
Nestas “Alminhas” param os andores em dias de procissão, seguidos pela multidão de fieis que assim erguem ao céu uma prece conjunta “pelas almas de quem lá têm”. Monumentos singelos que a fé dos naturais ergueu, eles pedem igualmente a cada viandante que passa uma prece pela alma dos que morreram.
Simples e singela, também pelos montes, à beira rio, ou mesmo na curva dum caminho, nos surge por vezes uma cruz de pedra ou de madeira, nítida e significativa no seu silêncio. Símbolo de dor e de saudade, ela é a evocação de alguém que a morte um dia, - ou uma noite -, colheu num pego do rio, perdido na neve ou nos dentes acerados dum lobo.
Ficou ali a cruz, final recordação de alguém que com o correr dos anos só os já muito velhos lembrarão e recordarão quem foi.























LENDAS

Para além das histórias de bruxas e lobisomens contadas aos serões, inúmeras lendas fazem igualmente arte da tradição oral, passando de geração em geração através dos tempos.
Efectivamente por todo o Barroso se ouve falar de mouras encantadas, palácios maravilhosos, panelas cheias de moedas de ouro, em suma, um rol de histórias com que os espíritos se deleitam e as imaginações devaneiam.
A alimentar essas imaginações, inúmeros testemunhos de outras idades e outras presenças são amiúde assinalados, - castros, antas, moedas, objectos metálicos e de cerâmica, ruínas e pedras de formas estranhas e misteriosas.
Não é pois de admirar que no lendário das várias povoações apareçam algumas histórias fantásticas, mais ou menos poéticas. Em Frades, a mais corrente era a do Altar da Moura, designação dada a um conjunto de enormes penedos, debruçados dum alto monte sobre um despenhadeiro abrupto e onde em tempos teria vivido uma moura encantada.
No topo deste penedo e como que dando verosimilhança à lenda, distinguem-se nitidamente quatro pequenas cavidades circulares que o povo afirma terem servido de bancos à moura, enquanto um vão interior, ocasionado pela justaposição de alguns penedos menores, é dado como tendo-lhe servido de masseira.
Quando e quem terá sido o longínquo sonhador que assim crismou estes penedos?
Para além destas, outras histórias havia, algumas tão ingénuas que nem se poderiam chamar lendas. Como a do homem da Lua, que lá está, dizia a minha avó, mas já não me lembro porquê. Ou a da costureira, que pelas noites de Inverno vinha matraquear nas mesas de cabeceira da cama, enchendo o silêncio com o barulho dos pedais, penitência que lhe cabe cumprir eternamente, pois morreu sem pagar a máquina…
Como quer que seja e como atrás se disse, cada terra tem as suas próprias lendas, algumas havendo como a do Mosteiro de Santa Maria das Júniase a da Ponte da Misarela, que ultrapassaram há muito o âmbito local. Depois a própria designação por que são conhecidos vários povoados e inúmeros relevos, sugere por si mesma uma origem lendária.
Donde virão de facto os nomes de certas terras como Cambezes, Donões, Sezelhe, Contim, Mourilhe, Pitões, Brandim, Montalegre?
Rochas e relevos como a Pedra Feirosa, o Penedo das Bestas, a Pedra do Esporão, o já citado Altar da Moura?
Se para alguns ainda seria possível com alguma boa vontade deduzir uma relação, para outros só a conjectura será resposta. Como estranhar então que das cinzas do passado subam a cada passo os fumos da lenda?
De facto o povo do Barroso paira entre dois Universos. Se por um lado vive ligado e amarrado ao imediato, - a família, a casa, os animais, a terra -, por outro a pureza e o primitivismo do meio empurram-no decisivamente para o maravilhoso e o fantástico.
Não poderemos julgá-los. Nas alturas, entre a terra e o céu, os juízos humanos tornam-se insuficientes, há coisas que adquirem ali um sentido diferente.
E ao olharmos aqueles cumes e aquelas penedias que atravessaram os séculos e vão continuar para além, - oh! Sim! Muito para além de nós! -, colhe-nos uma sensação de fragilidade, insignificância e transitoriedade que nos pungem e quase fazem desejar ser-lhe iguais.
Mas não, nós passamos…